Os canibais [por Olga Rodrigues]

Zepovinho

Muito se tem dito acerca do interesse do Brasil na implementação do famigerado AO90 e da forma como este tem vindo a ser tratado pelas autoridades brasileiras como um desígnio nacional a ser perseguido a todo o transe.

É necessário porém entender que a construção deste quadro mental “anti – Portugal” não começou agora, sendo algo que tem vindo a ser paulatinamente firmado desde, pelo menos, o início do século XX. É pois nesta altura que alguns intelectuais brasileiros começam a reivindicar a existência de uma cultura brasileira própria, diferente daquela levada pelos colonizadores europeus, sobretudo pelos portugueses.

A génese desta atitude reivindicativa, conjuntamente com influências culturais provenientes de correntes literárias e culturais recém-criadas na Europa (de que o Surrealismo é um exemplo significativo) que preconizam e até incentivam uma maior liberdade e afastamento do cânone cultural clássico. Esta atitude conduzirá à criação de correntes literárias e culturais diversas do modelo cultural clássico originalmente criado na Europa.

Neste contexto, autores brasileiros como Oswald de Andrade(1) desenvolvem toda uma obra que pretende demonstrar essa demarcação da cultura tradicional europeia e sobretudo portuguesa que se expressa em obras como o “Manifesto Antropófago”(2). Este textinho expõe na perfeição o que muitos brasileiros ainda hoje pensam da cultura portuguesa. Encaram-na não só como algo de que precisam de se libertar, mas também algo que precisam de “comer”, de “deglutir”, de eliminar para criarem a sua cultura própria, para conseguirem assim obter a sua autonomia cultural.

A “eliminação” da língua portuguesa e a sua substituição pela “língua brasileira” seria (é) uma peça-chave nesse processo de aquisição de autonomia cultural e política.(3)

A “língua brasileira” seria constituída não só por elementos de diversos falares indígenas brasileiros a que se juntariam expressões idiomáticas utilizadas pelos escravos negros de origem africana mas sobretudo por vocábulos da língua portuguesa escritos com erros que seriam perfeitamente assumidos e fariam parte da futura “língua brasileira” a construir a partir, sobretudo, da “deglutição” da língua portuguesa.

Este foi o caldo de cultura em que se começou a criar e em que posteriormente vingou o AO 90.

O que causa espanto não é o canibalismo da banda de lá do Atlântico mas sim a colaboração e a cumplicidade activas dos canibais da banda de cá.

Olga Rodrigues


 

(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

(2) https://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_Antrop%C3%B3fago
e http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf

(3)Por outro lado, a técnica de escrita explorada no Manifesto, bem como em todos os poemas mais significativos do autor antes e após este, aproximam-se mais das chamadas vanguardas positivas, mais construtivas que o Surrealismo de Breton e continuam propondo uma língua nacional diferente do português. O desejo de criar uma língua brasileira se manifestaria em sua obra, principalmente, por um vocabulário popular, explorando certos “desvios” do falante brasileiro (como sordado, mio, mió), intentando o “erro criativo”.[nota 1] Este sonho somente se pareceria concretizar posteriormente, no entanto, na prosa de Guimarães Rosa e na poesia de Manoel de Barros.”  Ver  https://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade.

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