‘Como uma baleia que deu à costa nos areais de Ofir’ [António Sousa Homem]

«D. Fernanda agradecia a crónica mas lembrava que o jornal ia adoptar o Acordo Ortográfico – e que era preciso decidir se eu preferia “a antiga ortografia”.

O assunto nunca se tinha colocado. Vagamente, por piada, à mesa e em hora de maledicência, falava-se do Acordo Ortográfico como de uma baleia que tivesse dado à costa nos areais de Ofir. Para todos os efeitos, sempre julguei que o Acordo Ortográfico fosse uma excentricidade do professor Cavaco e do governo do eng.º Sócrates (porque assentava bem a ambos – a um, na falta de sensibilidade; a outro, na ignorância), com a ajuda de filólogos a quem o Prof. Lindley Cintra tinha dado má nota. O caso é que sempre mantivemos que o assunto não era para levar a sério.»

Como Moledo despreza o Acordo Ortográfico

Esta família de poliglotas teria escolhido a ‘versão antiga’ – até por birra.

A minha sobrinha maria luísa acha que estamos sitiados depois do Acordo Ortográfico, porque ninguém sabe em que grafia se há-de comportar. À trilogia de temas interditos durante os almoços da família (política, religião e horários de comboio), de acordo com o velho Doutor Homem, meu pai, juntar-se-ia agora o Acordo Ortográfico.

Ora, a ortografia portuguesa é um corpo polémico e desconcertado de leis controlado hoje por dicionaristas que detestam a forma como escreviam os mestres do passado. Na família, o tema seria desconsiderado pelo Tio Alberto, que foi latinista, sabia também grego e acompanhava diálogos em farsi, manejando o francês, o inglês, o italiano e um nadinha de alemão – para além das suas línguas de sempre, o espanhol e o galego clássico e erudito, que lhe permitia compreender tanto as clepsidras metafísicas e musicais das obras de Otero Pedrayo, Cabanillas ou Cunqueiro, como as circunvoluções gastronómicas de José Puga y Parga, o grande especialista em bacalhau guisado. Mas ele era um Sábio, uma excepção na parte montanhosa do reino do Minho, vigiando – até ao início dos anos setenta – o mundo a partir da sua casa de São Pedro de Arcos, ou dos picos de Paredes de Coura.

O latim e o grego serviram-lhe para impressionar alguns juízes destas comarcas mais isoladas. O russo (e um pouco de farsi, ou persa), aprendeu-o nas margens do Cáspio ou às escondidas, em lições particulares parisienses ou genebrinas – para que o seu grande amor não crescesse entre idiomas modernos e conservasse alguma da pureza das velhas línguas da humanidade (o leitor recordará o seu namoro com uma princesa russa que, afinal, era persa, Svetlana Davidovna). As outras línguas, tirando o inglês – que era obrigatório na família, e que servia para ler os jornais conservadores chegados de Londres –, foram aprendidas por necessidade. De modo que o Acordo Ortográfico não seria objecto de confusão nesta casta de poliglotas indisciplinados que até há pouco tempo apenas conhecia a tinta permanente e as folhas pautadas de almaço. Que o Acordo decrete uma grafia ou outra, o caso é que só se lhe dá crédito nas conservatórias e nos despachos oficiais. A Tia Benedita, a matriarca dos Homem, herdeira de um poderoso (mas inexistente) ramo ultramontano da família, escrevia ‘à antiga’, ou seja, como antes da ortografia do regime do dr. Afonso Costa, para que não houvesse contaminação.

Ler mais em: http://www.cmjornal.pt/opiniao/detalhe/como-moledo-despreza-o-acordo-ortografico

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2 Comments

  1. Convém não esquecer que se trata de um pseudónimo do Francisco José Viegas, conhecido acordista.

    1. Olha, “o” ICE! Já cá faltava.

      Claro. O Homem (António de Sousa) até escarrapacha as suas iniciais lá no blog e tudo: FJV.

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