Uma das piores facetas do futebol, não contando evidentemente com a face do inefável presidente do FCP, é o facto de os futebolistas falarem. Nunca entendi porquê, muito menos para quê, mas é mesmo uma inevitabilidade: os jogadores abrem a boca e falam. Um horror. Não sei se isso acontece exactamente assim com toda a gente mas, pelo menos, eu cá fico logo a tremer quando vejo um microfone a aproximar-se de um desses bacanos; é desastre pela certa. A minha primeira reacção, quase instintiva, é ir escorregando pela cadeira abaixo, murmurando coisas ininteligíveis e excruciantes como “aiaiaiaiaiaiai”, as mãos agarrando a cabeça, “aijasus, aijasus”, enquanto me contorço de dor física genuína, “ai, ui, ó meu Deus, ó meu Deus, poupa-me, cruzes”, antecipadamente extenuado pelo tremendo esforço intelectual que faz aquela rapaziada para debitar as maiores imbecilidades e os mais retorcidos lugares-comuns que imaginar se possa.
Agora que se aproxima o campeonato europeu, teme-se por conseguinte o pior. A um gajo que dá uns pontapés na bola, enfim, não se pode nem se deve exigir muito. Nunca entendi isso das entrevistas aos jogadores, em suma, principalmente porque julgava, prenhe (salvo seja) de ingenuidade e juventude, que um jogador de futebol se deveria limitar a jogar futebol, além de tratar lá da sua vidinha e de respirar, abstendo-se portanto de abrir a boca – e por maioria de razões em público. Mas não. Qual quê. Parece que a coisa tem audiência, como é apanágio da multidão ignara, e bem sabemos que os jornalistas adoram humilhar aqueles valentes das quatro linhas.
Existirá porventura um só português que não saiba antecipadamente o que vai dizer seja que jogador for, seja em que circunstância for? Ou que desconheça alguma das (exactamente) cinco perguntas que todos os jornalistas fazem a todos os jogadores? Ou as (nem mais nem menos) cinco respostas que todos os jogadores sabem de cor?
_ Caiçara, um triunfo difícil, como se sente?
_ Bem – diz Caiçara, ofegante e a precisar urgentemente de um banho – ganhámos, fomos os melhores nos noventa minutos, dentro das quatro linhas.
_ Caiçara, uma derrota inesperada, como se sente?
_ Bem – responde Caiçara, ligeiramente chateado e a precisar de um banho com urgência – agora há que levantar a cabeça e pensar já no próximo jogo.
_ Um empate, Caiçara, e agora?
_ Bem – Caiçara faz uma pausa, hesita, estafado, mortinho por ir tomar banho – dentro das quatro linhas, em jogo jogado, nós fomos melhores, mas o futebol é isto mesmo. Há que levantar a cabeça e pensar já no próximo jogo.
_ Caiçara, satisfeito por não ter saído do banco?
_ O Caiçara – diz Caiçara, na terceira pessoa, como é de tradição e fino – é jogador do Sport Lisboa e Caparide, o mister é que sabe quem deve ou não deve jogar, perguntem ao mister.
_ Caiçara, uma palavrinha para os nossos espectadores?
_ Sim, com certeza: uma palavrinha para os vossos espectadores.
Cada uma destas cinco combinações de pergunta-resposta pode ter inúmeras variações, mas a substância é rigorosamente a mesma, isto é, consubstancia a substância que típica e maciçamente ocupa a caixa craniana de um qualquer futebolista. O que surpreende não é tanto a insistência dos repórteres, mas o espantoso facto de os jogadores se sentirem na obrigação de responder; também não espanta o interesse do populacho que tais enormidades e vulgaridades escuta, com enlevo, mas antes a frequência com que os mesmíssimos dislates são reproduzidos, nos jornais, nas estações de rádio e de televisão; todos aqueles diálogos suados e incrivelmente previsíveis são muitas vezes “analisados” por “comentadores” especializados no “fenómeno futebolístico”, uns gajos que são pagos, também eles, para debitar lugares-comuns a respeito de lugares ainda mais comuns.
Acho que há aqui alguma coisa que não bate certo, de todo. Não se pode esperar que um músico saiba dar pontapés na bola ou que um escritor seja mestre na “arte” de fazer fintas com a redondinha. Se bem que existam exemplares de todos os ramos para confirmar não a regra mas a excepção, é-me extremamente difícil compreender qual é a finalidade – ao certo – de tal baralhada. Os artistas da bola devem, segundo as regras do bom-senso e da mais pura sanidade mental, dar excelentes chutos na dita, e uns toques, e assim. Por conseguinte (e por favor, é um pedido), devem abster-se de dar pontapés em outras coisas, como, por exemplo, na gramática – ou, mais grave ainda, na massa cinzenta das pessoas comuns.
Sejam artistas, sim, o que vos pedimos é que sejam artistas. Ganhem lá aquele caneco. Mas, por amor de Deus, pela vossa rica saúde: calem-se!
Nota: no presente exercício pedagógico, utiliza-se um nome de jogador de futebol fictício (mas que existiu mesmo, nos anos 60 do século passado) porque é genuíno e verdadeiramente paradigmático da profissão: como se sabe, não existiu nunca um jogador de futebol a sério que não tivesse um nome esquisitíssimo. Compare-se, por exemplo, Gomes com Futre, Alberto (pfff) com Ronaldo, ou Silva com Alhinho; quais destes jogadores ficaram para a História? Pronto. Está esclarecida a pedagogia da coisa.