Aníbal ad portas
Quando e como surgiu o AO90? De quem foi a (peregrina) ideia? Porquê? Para quê?
As respostas a todas estas perguntas resumem-se a uma dúzia de letras (já contando com o espaço) que representam um só nome: Cavaco Silva.
Em Janeiro de 1990, o então Primeiro-Ministro chamou o seu Secretário de Estado da Cultura, o inefável Pedro Santana Lopes, e — segundo declara este mesmo — encarregou-o de duas tarefas “principais”: «assegurar que o CCB estivesse pronto a tempo de receber a 1.ª presidência portuguesa das Comunidades Europeias, a 1 de Janeiro de 1992, e negociar e assinar o Acordo Ortográfico.»
Santana cumpriu ambas as tarefas “principais”, de facto, e em tempo record no que diz respeito ao “acordo ortográfico”: foi assinado na Academia das Ciências de Lisboa em Dezembro desse mesmo ano.
Foi assinado em 1990 mas já tinha começado a ser cozinhado em 1975, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, seguindo a mesma lógica política da anterior “grande reforma ortográfica” de 1911. Lógica política essa que se pode condensar na seguinte premissa: instaurado um novo regime, pela via revolucionária, a primeira prioridade é apagar todos e quaisquer vestígios do statu quo antecedente. A começar pela Língua, evidentemente, já que uma “nova” forma de expressão escrita implica, por exclusão de partes, passar a outra a ser “antiga” — logo, ultrapassada, logo, obsoleta, logo, inútil.
Em 1911, muito pouco tempo depois do derrube da Monarquia, a 5 de Outubro de 1910, o novo regime encetou uma profunda “reforma” da ortografia do Português, com o objectivo (pouco subtil, convenhamos) de contribuir para tornar irreversível o novo regime determinando administrativamente a obsolescência da Língua “monárquica”. Passava assim, por decreto, a ser obrigatório utilizar uma ortografia “republicana”, tão diversa da anterior como diferentes eram os dois tipos de regime então ainda em confronto. É uma maneira fácil de mostrar serviço: não havia qualquer necessidade de mexer na ortografia mas isso não interessa para nada, mexe-se na mesma e pronto, assim não só se dá a ideia de que já se fez alguma coisa de “novo” (e de “evoluído”) como se passa a “mensagem” de que havia realmente algo de muito errado na escrita “antiga”; pois se não houvesse, para que diabo se iria então “corrigi-la”? E, se houve que a “simplificar”, então não é evidente que ela era antes desnecessariamente, absurdamente, estupidamente “complicada” (e “retrógrada”)?
Idêntico processo de mecânica mental e ideológica ocorreu a alguns portugueses logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Decalcando a “lógica” de 1911, após ’74 também houve uns quantos, certamente netos ou bisnetos dos primeiros, que pensaram imediatamente em mais uma “reforma” da ortografia. E portanto lá foi um grupo excursionista ao Brasil, essa gigantesca ex-colónia portuguesa a 6.000 km de distância, e ali reuniram nossos excursionistas com meia dúzia de sumidades linguísticas indígenas; desta célebre e animadíssima reunião saiu um primeiro rascunho daquilo que em 1986 daria origem a um segundo rascunho, no Rio de Janeiro e já com outras condições logísticas, mas não com menor boa disposição ou com menos folguedos; por fim, 4 anos mais tarde, sobre o segundo rascunho rabiscou-se aquilo que na terminologia oficial foi baptizado como “Acordo Ortográfico de 1990”.
Um acordo que o não é e que de ortográfico nada tem. E sabemos agora que a obsessão pela novilíngua continua, este não será muito provavelmente o último.