Dia: 1 de Agosto, 2015

Uma história (muito) mal contada [III]

cavacoerrrrrrr2008, “annus horribilis”

Retorcer melancolicamente o bigode é natural num homem, em especial se o dito o tiver para retorcer. Já retorcer obsessivamente uma ideia não é lá muito natural numa pessoa se a dita jamais tiver tido uma única ideia.

Na mesma acepção, quando alguém coça pensativamente a cabeça é impossível saber-se o que ali ocorre ao certo, isto é, se há de facto algum pensamento dentro da cabeça que por fora está a ser coçada pelo respectivo portador.

E no entanto as coisas acontecem (shit happens, em jargão técnico), há ideias peregrinas que peregrinam, há perfeitos idiotas que fazem troça das pessoas normais, sucedem-se as desgraças em catadupa sem que, na maior parte das ocasiões, quase ninguém se aperceba sequer daquilo que está a acontecer.

O AO90 é uma espectacular demonstração prática destas retorcidas, comichosas e um pouquinho misteriosas sentenças.

Nunca será demais reenquadrar a “questão ortográfica”, tendo em atenção alguns marcos históricos, de 1911 a 1990, com paragens em 1945, 1973, 1975 e 1986, e focando mais detalhadamente  o que envolveu a assinatura do Tratado “de unificação da ortografia” (como baptizaram aquilo os seus autores). Entre 1991 e 2003 não se passou rigorosamente nada, tivemos uma dúzia de anos tranquilos, mas depois — de 2004 a 2007 — as coisas aceleraram e chegámos então ao ano fatídico em que houve de tudo um pouco: no campo das desgraças, foi aprovada a RAR 35/2008, no campo das esperanças foi “discutida” e arquivada a Petição/Manifesto “de” Vasco Graça Moura.

Foi este ano de 2008, como e pelo que veremos, o verdadeiro “annus horribilis” da chamada “questão ortográfica”.

Em Julho foi publicada no Diário oficial a Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008. Esta publicação seguiu-se a umas quantas sessões de anedóticas “discussões” no hemiciclo, tendo por desfecho uma ainda mais ridícula votação, com os resultados que são conhecidos e que deverão estar por esta altura mais do que entendidos: 4 votos contra e 17 abstenções, além de algumas curiosíssimas e muito convenientes ausências no exacto momento da dita votação; de resto, tudo a favor, a RAR 35/2008 acabou sendo aprovada por esmagadora maioria. Esta fatalidade tem uma data oficial: 16 de Maio de 2008.

Uns dias antes, a 8 de Maio, tinha sido entregue naquele mesmo Parlamento uma Petição com o título “Em Defesa da Língua Portuguesa” e com o escritor Vasco Graça Moura à cabeça, como 1.º subscritor. Esta petição organizava-se em torno de um “blog” (com o mesmo título) e a recolha de subscrições consistia basicamente, como aliás é costume nas petições, desde há uns tempos, em “assinaturas” electrónicas. Foi já com mais de 113.000 que uma delegação de representantes dos signatários se apresentou no Parlamento, tendo essa Petição/Manifesto sido discutida (em Maio de 2009), após o que baixou à Comissão de Ética, Sociedade e Cultura e foi por fim arquivada.

Nos termos regulamentares, foi despachado relatório em conformidade, no qual o deputado relator  terminava recomendando que “as preocupações e os alertas dos peticionários devem ser tidos em conta”.

O relator é da opinião que as preocupações e os alertas dos peticionários devem ser tidos em conta, do ponto de vista técnico e político, a curto e a médio prazo.
(…)
Esta petição, concordando-se com a totalidade ou só com alguns das suas partes, com os seus objectivos, merece elogio parlamentar positivo, porquanto ao abrigo do Direito de Petição,  consagrado constitucional e legalmente, veio contribuir para o debate e para a chamada de atenção de uma matéria de relevante interesse público.

“O relator é da opinião que” [sic]…

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