Pássaro azul
Em 25 de Setembro de 2008, oito meses antes de a Petição/Manifesto de VGM et al ter sido “discutida” no Parlamento (e arquivada, sem mais), já a possibilidade de se lançar uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos tinha sido ventilada, num simples “post” publicado no que era então o meu “blog” pessoal. À época, e desde pelo menos Janeiro de 2007, ia publicando ali alguns textos e outros conteúdos de agitação e propaganda contra o AO90. Foi no início uma campanha de agitprop algo ingénua, reconheço-o sem qualquer rebuço, visto que gravitava essencialmente em volta do que então estava em curso, a tal petição/manifesto de VGM e outros, mas rapidamente me apercebi de que a luta não podia ficar limitada a uma única “frente de combate” e dependente dos resultados (ou da ausência deles) que dali adviessem, caso se confirmassem os piores receios.
As coisas não estavam realmente a correr bem, o silêncio ensurdecedor sobre o assunto e o progressivo isolamento da questão faziam prever o pior. Como poderá jurar a pés juntos qualquer bruxo de bairro, não é de todo necessário possuir extraordinários dotes de adivinhação para prever o que é previsível. Difícil, isso sim, é prever o que é imprevisível, ele há neste mundo coincidências espantosas.
Como diz Sophia no poema Cantata de Paz, “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.
Ora, nem de propósito, por aquela época o que se ia vendo, ouvindo e lendo sobre a petição/manifesto era VGM isto, VGM aquilo, Graça Moura para cá, o Vasco para lá, VGM sobretudo, e sobre tudo pairando o espectro do político, o destacado dirigente de um Partido confundindo-se com o (co-)autor do Manifesto, a petição subscrita por milhares aparecia a muitos outros milhares como tendo apenas a assinatura do seu primeiro subscritor e principal mentor.
Acredito piamente em que isto tenha sido involuntário, que os acontecimentos se tenham encadeado assim como poderiam ter seguido outro rumo. Mas pelo menos quanto ao que está em causa, a Língua Portuguesa, parece-me ser tremendo erro que uma única pessoa se torne na “face visível” de uma Causa nacional, transversal, dizendo respeito a todos, mesmo aos “ignorantes”, aos analfabetos e até aos recém-nascidos, os quais, pobres anjinhos, por tremendo azar vêm ao mundo ignorantes de todo, sem saber ler nem escrever ou sequer falar.
Bem sei que existem rebanhos, manadas e bandos, por exemplo, não há como negar as evidências, ele há pastores, ele há líderes, ele há machos-alfa (ou fêmeas-alfa), e é claro que determinam algumas leis da Natureza seguir confortavelmente o formigueiro sua rainha pelo carreiro.
Porém: não tem necessariamente de ser sempre assim, que diabo, ao menos neste tema em particular poderia e sobretudo deveria ter havido alguma prudência. Vasco Graça Moura foi uma figura de excepção no panorama cultural português. Ficará para sempre nos anais da nossa Literatura. Tem reservado, por mérito próprio, um lugar de destaque na História da Cultura portuguesa. E foi efectivamente o mais mediático activista na luta contra o monstro desortográfico.
Mas VGM foi também um homem. Um homem que, à semelhança de qualquer cidadão politicamente habilitado e que esteja para aí virado, militava num partido político, ao qual dedicava boa parte do seu tempo, do seu trabalho, do seu saber e, por fim, do seu próprio prestígio.
Para os portugueses em geral, VGM era um intelectual de topo que militava no PSD. Muito ligado a Cavaco Silva, foi deputado europeu eleito pelo PSD e foi nomeado pelo PSD como Secretário de Estado em 1975. Portanto, para os portugueses em geral, VGM era “o PSD”. Criou, por conseguinte, enquanto animal político, sem ofensa, uma espécie de anti-corpos no tecido social indígena. Muitos portugueses passaram a associar ideologicamente a Petição/Manifesto à militância político-partidária de Vasco Graça Moura, que era a “face visível” do Manifesto. E por simples associação de ideias, não havendo à época mais nada em termos de resistência ao AO90, muita gente passou a associar essa “face” não apenas à petição como à Causa anti-acordista em geral.
Acresce que, como vimos, havia um outro problema na petição/manifesto, na sua formulação: afinal, e note-se que o próprio Parlamento “solicitou a clarificação do objecto da petição”, a pretensão da dita consubstanciava-se em que o mesmo Parlamento “tome, adopte ou proponha as medidas julgadas necessárias”.
Na melhor das hipóteses, isto equivaleria à apresentação por parte dos deputados de uma Iniciativa Legislativa (ou proposta de Resolução) — conforme entendessem, porque o texto da petição não era objectivo quanto a isso. “Para que sejam alcançados os resultados reivindicados nesta petição”, convenhamos, é uma formulação algo vaga.
Na pior das hipóteses, que era aliás mais do que provável, o Parlamento poderia vir a fazer quanto ao assunto o que efectivamente acabou por suceder: despache-se relatório, recomende-se ao Governo “que as preocupações e os alertas dos peticionários devem ser tidos em conta” (“na opinião do deputado relator”, valha-me Deus!), arquive-se, assunto arrumado.
Em suma, deste quase fatal resultado sabemos nós hoje, ficámos dele inteirados assim que foi despachado o tal relatório parlamentar, mas havia que decidir muito antes, por antecipação, por presunção (e sem qualquer água benta), o que fazer se a petição falhasse. E se afinal aquilo desse em nada por um lado e em coisa nenhuma por outro?