«São extraordinários, disse Craft baixo a Carlos, procurando o chapéu. Desorganizam-me, preciso ar!…»
“Os Maias”, Eça de Queirós
Trapalhada na Hora
A “Empresa na Hora” foi uma coisa muito engraçada que José Sócrates, um dos espíritos mais “nas horas” que havia (por exemplo) em 2006, se lembrou de inventar absolutamente de raiz e sozinho e tudo. A ideia dele, digo eu, a julgar pela designação da coisa, seria com certeza tornar possível a qualquer cidadão criar uma empresa numa hora e, melhor ainda, não há cá maçadas, bastava o cidadão-futuro-empresário dizer a sua expectante consorte, olha, Maria, eu vou só ali criar uma empresa e já volto. E assim como a “Empresa na Hora”, seguindo a mesma lógica de um mínimo de formalidades imediatas para um máximo de complicações futuras, foi também lançada a “Associação na Hora“, dando provimento ao caso de a alguém dar na veneta tornar-se de repente já não empresário mas antes dirigente associativo, ou assim. Não me consta que tenha sido criada a “Tertúlia na Hora” ou o “Clube de Futebol na Hora”, apenas para citar dois exemplos de coisas que a qualquer um pode apetecer fundar expeditamente, mas não percamos a esperança, estas duas outras ferramentas de “e-gov” estarão certamente ao dispor dos portugueses em breve.
Isto para explicar a situação ligeiramente problemática, ou de grande entalanço, vá, em que nos achámos a certa altura, e a forma de que alguém se lembrou para sair dela: como nenhuma entidade se chegou à frente para patrocinar e encabeçar a ILC, pois, porque não, toca a criar nós mesmos a nossa própria Associação para o efeito: vamos ali à “Associação na Hora” e pronto, está feito, já temos entidade, assim sim, vai correr bem.
Correu mal. Ui, mas que mal aquilo correu, valha-me Deus!
As chatices começaram logo pelo nome da dita “Associação”. Nestas coisas que teoricamente são feitas “na Hora” há umas listas de nomes à escolha, não é chegar lá e dizer “olhe, fazia o favor de tomar nota, a nossa Associação vai chamar-se Assim ou Assado”. Ora, as listas de designações não são infinitas, por um lado, e não se pode repetir (evidentemente) um nome já registado. Portanto, seleccionadas das designações que restavam as muito poucas que poderiam ter alguma coisa a ver com uma ILC contra o AO90, dispúnhamos de 4 ou 5 nomes “à escolha”.
Nessa altura, o grupo de “promotores” ainda era relativamente grande e as decisões eram tomadas por votação, o que significa, para abreviar uma possível longa dissertação sobre a matéria, que muito raramente se conseguia decidir fosse o que fosse em tempo útil e muito menos a contento de todos; formavam-se grupinhos dentro do grupo, havia manobras de pressão, birras, discussões, intrigas a granel. A designação que ganhou a votação foi esta coisa extraordinária: “Associação Lusófona Capítulo da Palavra”. Sim, bem sei, é um horror, mas, parafraseando a Teresa do “Big Brother”, isso agora não interessa nada.
Bom, pronto, siga, isto é uma democracia, lá fomos nós, uma delegação de três, vira à direita, vira à esquerda, até à Rua Augusto Pina (se bem me lembro), levávamos um dossier com os estatutos e demais papelada necessária, incluindo o respectivo chequezinho, ora cá está, número 21, é aqui mesmo: “FECHADO”. Azar, tínhamos chegado 5 minutos tarde demais.
Abençoados 5 minutos. É nas dificuldades que se vêem os amigos, lá se diz no lugar-comum, que é um sítio onde por vezes se dizem coisas acertadas. Aquele grupo de “promotores” da ILC acabou por se desfazer, as zangazinhas agudizaram-se, as intrigas — que são minas com retardador — deram cabo daquilo tudo em poucos dias, a maior parte dos “promotores” desapareceu sem deixar rasto; alguns lá terão regressado às suas cadernetas de “causas”, imagino, e pelo menos um foi a correr fundar o seu próprio grupo no Fakebook, que é óptimo, como sabemos, para virtualmente fundar tudo e mais alguma coisa “na hora”.
Existem afinal imensos sistemas destes, o Primeiro-Ministro de 2005 a 2011 apenas atirou mais dois para o barulho, na verdade ele há de tudo “na hora”.
Até há processos mentais “na hora”. Tomando de empréstimo a ideia de Miguel Esteves Cardoso, que “descobriu” os DAQOMPEB*, nós temos, nas hostes ditas anti-AO90, os AETECI: pessoas que dizem “Ah, E Tal, Eu Cá Ignoro (o acordo ortográfico)”.
Um exemplo na Internet: «Por isso, NUNCA hei-de adoptar esta última versão do acordo.»
Ou centenas de exemplos na Internet: “ignoro o acordo ortográfico“.
Os AETECI dizem (e escrevem) umas coisinhas assim, acham-se o máximo, assunto arrumado, não se fala mais nisso, se eu ignoro o AO então o AO não existe. Alguns chegam ao ponto de preceder tão lapidares pichagens verbais com uma recomendação não menos lapidar: “façam como eu”. Ou seja, “façam como eu, ignorem o AO e pronto”. A sério. Já li muito disto, por aí, dezenas, centenas de vezes.
Um processo mental “na hora”, de facto: qualquer problema resolve-se, extingue-se por si mesmo quando simplesmente é ignorado. “Raciocínio” brilhante, não? Como dizia o velho Craft, estes portugueses “são extraordinários” e desorganizam mesmo, tornam-se até sufocantes, quando não hilariantes — os seus rasgos de inteligência… na hora. Claro que é incomparavelmente mais fácil passar o tempo a coçar a micose** e a debitar umas larachas do que a fazer alguma coisinha de útil ou prático. Quantos dos AETECI poderiam ter subscrito a ILC e não o fizeram apenas por puro comodismo, por simples preguiça? Quantas pessoas terão deixado de assinar o papel por terem lido as inúmeras pichagens dos AETECI apelando à “ignorância”?