2008, “annus horribilis”
Retorcer melancolicamente o bigode é natural num homem, em especial se o dito o tiver para retorcer. Já retorcer obsessivamente uma ideia não é lá muito natural numa pessoa se a dita jamais tiver tido uma única ideia.
Na mesma acepção, quando alguém coça pensativamente a cabeça é impossível saber-se o que ali ocorre ao certo, isto é, se há de facto algum pensamento dentro da cabeça que por fora está a ser coçada pelo respectivo portador.
E no entanto as coisas acontecem (shit happens, em jargão técnico), há ideias peregrinas que peregrinam, há perfeitos idiotas que fazem troça das pessoas normais, sucedem-se as desgraças em catadupa sem que, na maior parte das ocasiões, quase ninguém se aperceba sequer daquilo que está a acontecer.
O AO90 é uma espectacular demonstração prática destas retorcidas, comichosas e um pouquinho misteriosas sentenças.
Nunca será demais reenquadrar a “questão ortográfica”, tendo em atenção alguns marcos históricos, de 1911 a 1990, com paragens em 1945, 1973, 1975 e 1986, e focando mais detalhadamente o que envolveu a assinatura do Tratado “de unificação da ortografia” (como baptizaram aquilo os seus autores). Entre 1991 e 2003 não se passou rigorosamente nada, tivemos uma dúzia de anos tranquilos, mas depois — de 2004 a 2007 — as coisas aceleraram e chegámos então ao ano fatídico em que houve de tudo um pouco: no campo das desgraças, foi aprovada a RAR 35/2008, no campo das esperanças foi “discutida” e arquivada a Petição/Manifesto “de” Vasco Graça Moura.
Foi este ano de 2008, como e pelo que veremos, o verdadeiro “annus horribilis” da chamada “questão ortográfica”.
Em Julho foi publicada no Diário oficial a Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008. Esta publicação seguiu-se a umas quantas sessões de anedóticas “discussões” no hemiciclo, tendo por desfecho uma ainda mais ridícula votação, com os resultados que são conhecidos e que deverão estar por esta altura mais do que entendidos: 4 votos contra e 17 abstenções, além de algumas curiosíssimas e muito convenientes ausências no exacto momento da dita votação; de resto, tudo a favor, a RAR 35/2008 acabou sendo aprovada por esmagadora maioria. Esta fatalidade tem uma data oficial: 16 de Maio de 2008.
Uns dias antes, a 8 de Maio, tinha sido entregue naquele mesmo Parlamento uma Petição com o título “Em Defesa da Língua Portuguesa” e com o escritor Vasco Graça Moura à cabeça, como 1.º subscritor. Esta petição organizava-se em torno de um “blog” (com o mesmo título) e a recolha de subscrições consistia basicamente, como aliás é costume nas petições, desde há uns tempos, em “assinaturas” electrónicas. Foi já com mais de 113.000 que uma delegação de representantes dos signatários se apresentou no Parlamento, tendo essa Petição/Manifesto sido discutida (em Maio de 2009), após o que baixou à Comissão de Ética, Sociedade e Cultura e foi por fim arquivada.
Nos termos regulamentares, foi despachado relatório em conformidade, no qual o deputado relator terminava recomendando que “as preocupações e os alertas dos peticionários devem ser tidos em conta”.
O relator é da opinião que as preocupações e os alertas dos peticionários devem ser tidos em conta, do ponto de vista técnico e político, a curto e a médio prazo.
(…)
Esta petição, concordando-se com a totalidade ou só com alguns das suas partes, com os seus objectivos, merece elogio parlamentar positivo, porquanto ao abrigo do Direito de Petição, consagrado constitucional e legalmente, veio contribuir para o debate e para a chamada de atenção de uma matéria de relevante interesse público.
“O relator é da opinião que” [sic]…
Em função da relevância da opinião de um deputado, estamos conversados, digo eu. Nesse mesmo relatório, no entanto, o dito relator refere que a Comissão “solicitou a clarificação do objecto da petição”.
No dia 28 de Maio e na sequência da aprovação pela Assembleia da República do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa no dia 16 de Maio, o Presidente da Comissão de Ética, Sociedade e Cultura solicitou «a clarificação do objecto da petição»
Em resposta, no dia 9 de Junho de 2008, os peticionários reafirmaram a actualidade de «tudo o que tiveram ensejo de exprimir na sua petição» e que é «documentada nos vários pareceres especializados e formulados com intervenção de conceituados linguistas da Universidade portuguesa de que oportunamente foi feita entrega à Assembleia da República.»
Entendem os peticionários que «o Acordo Ortográfico enferma de vícios susceptíveis de gerarem a sua patente inconstitucionalidade” e solicitam à Assembleia da República que “tome, adopte ou proponha (Lei nº 43/90, de 10 de Agosto, art.º 2º) as medidas julgadas necessárias» a desenvolver para que sejam alcançados os resultados reivindicados nesta petição.
Ah, bem, os peticionários “solicitam à Assembleia da República”, a mesma que tinha aprovado o AO90, em 1991, e que tinha acabado de aprovar também o respectivo 2.º Protocolo Modificativo (via RAR 35/2008), que “tome, adopte ou proponha as medidas julgadas necessárias”.
É claro que a coisa ficou por ali mesmo. Diz na Constituição da República Portuguesa que os cidadãos têm o direito de dirigir petições à Assembleia da mesma República, portanto foi o que fizeram — como tantos outros antes e depois, para os mais diversos fins — aqueles cidadãos em concreto naquela exacta situação. Entregue regimentalmente a petição, tudo nos conformes, os representantes dos peticionários expõem o melhor que podem o seu pleito, os deputados saúdam os peticionários (alguns deles dizem até umas coisas sobre o assunto, durante aquilo que, segundo o “regimento”, se chama “discussão”) e por fim a dita petição “baixa à Comissão” respectiva, onde, pelo menos em teoria, é discutida de forma mais “especializada” para que seja despachado o respectivo relatório. O qual serve, nos mesmíssimos termos da lei que regula o “direito de petição“, para o Parlamento “recomendar” (ou não) ao Governo isto ou aquilo, (em princípio) a favor do pretendido pelos peticionários. Claro que não diz a lei, a das petições ou outra qualquer, que o Governo está de alguma forma obrigado a acatar uma “recomendação” do género (ou de qualquer outro), pelo que pode perfeitamente, o dito Governo, ignorar em absoluto a questão, no altamente improvável caso de sequer ler a dita “recomendação” algum membro do Executivo.
Não é esta a única “saída” possível para uma petição, na verdade, mas convenhamos que seria “um bocadinho” difícil, por maioria de razões no caso daquela em concreto, que partisse da mesma entidade que aprovou o AO90 e dos mesmos que aprovaram a sua “adoção” compulsiva a iniciativa de anular as inacreditáveis asneiras que ali mesmo e por eles mesmos tinham sido feitas.
Também subscrevi essa petição, pois claro, mas fui alertando o melhor que pude e soube o maior número possível de pessoas para a altíssima probabilidade de a petição acabar como… acabou mesmo: simplesmente arquivada pelo Parlamento e ostensivamente ignorada pelo Governo. Era necessário tratar de arranjar, e depressa, uma alternativa, um “plano B” para que a resistência ao menos não esmorecesse.
Não poderia ser com certeza um perfeito desconhecido como eu, sem autoridade académica (ou de outro tipo), sem pergaminhos (ou até papel) em qualquer área ou meio, o “mensageiro” mais indicado para fazer ver aos demais que a petição era um passo politicamente arriscado, quando não condenado à partida ao mais rotundo fracasso. Ora, precisamente por saber que a bem dizer “não existo” nos meios académico, político ou mediático, foi por ter consciência, em suma, da minha própria insignificância, que procurei (desesperadamente, devo confessar) alertar pessoas conceituadas, gente “de algo”, gente conhecida e de prestígio. O que de facto fiz; tentei, sem grande sucesso, chegar à fala com algumas pessoas, e troquei bastante correspondência com uma delas, o nome aliás mais conceituado (nestas coisas da Língua portuguesa) a seguir a Vasco Graça Moura. Era, por assim dizer, o “número dois” da petição/manifesto e mesmo, de certa forma, o “número dois” do próprio VGM nesta matéria.
Pois, senhoras e senhores, foi malhar em ferro frio, salvo seja. Escusado será dizer que ao tal “número dois” não interessava lá muito o pior dos cenários, interessava apenas e só o melhor dos cenários. Ninguém ouve aquilo que não quer ouvir ou entende o que não quer entender. E o caso ainda consegue ser mais flagrantemente deprimente quando a maldita realidade pode vir a estragar uma belíssima teoria.
Os piores receios — ou seja, as previsões mais pessimistas, isto é, a tal maldita realidade — infelizmente concretizaram-se. Em silêncio, sem mais, a petição foi arquivada, a parlamentar discussão foi esquecida, o relatório não teve (obviamente) a mais ínfima sequência (e muito menos a mais microscópica consequência), a “questão ortográfica” ficou para ali, comatosa, mais para lá do que para cá, literalmente amortalhada.
E assim, penosamente, se arrastaram os dias, as semanas, longos meses até finais do Verão de 2009. Foi aquela a primeira “travessia do deserto”, da qual muito naturalmente já poucos se recordarão mas que, perdoar-me-eis a frontalidade, eu cá não posso esquecer o que (não) sucedeu nessa época terrível.
Entre a entrega no Parlamento da Petição/Manifesto de VGM et al, a 8 de Maio de 2008, e a sua discussão em plenário, em 20 de Maio de 2009, tinha passado um ano inteiro sem que praticamente nada acontecesse, tudo na expectativa; logo a seguir à tal discussão por que toda a gente esperava, foi o fim desse ano lectivo, vieram as férias, o calor, a praia…
E o tempo continuava a arrastar-se, implacável, sem que nada sobre coisa alguma sucedesse. Não havia um só plano de acção, uma única ideia, um rasgo salvador, uma brecha no muro de silêncio, fosse o que fosse que ao menos não deixasse morrer a resistência à míngua de assunto.
A receita acordista (embrutecimento geral com anestesia local, injectando mentiras no cérebro do cidadão) parecia estar a resultar em pleno: não havia um artigo, um evento, uma entrevista, uma única referência às pobres “consoantes mudas”. O monstro ortográfico alastrava implacavelmente, como praga, como sarna, como se fosse um qualquer agente infeccioso de nova estirpe, sem vacina conhecida ou antibiótico possível.
Bem, só se… a não ser que… olha, e se a gente…
Não me foi possível apurar a autoria ou a publicação original da fotografia de topo.
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