Uma história (muito) mal contada [V]

 

Derrotar o AO90 a todo o custo mas não a qualquer preço

Foi sob este lema, ainda em finais de 2008, que “nasceu” a (ideia de uma) ILC. Significando, evidentemente, que mesmo na Causa mais justa, como era e como será sempre a nossa, não vale tudo. Não vale vender a alma ao diabo, não vale trocar o essencial pelo acessório, não vale condescender nos princípios, não vale ceder um milímetro no fundamental, não vale tolerar traições, infiltrações ou vendilhões.

Houve antes do lançamento alguns contactos, houve conversas, houve sondagens (no sentido não petrolífero do termo) e houve até um “site” — o primeiro exclusivamente dedicado ao tema – que pretendia, ingenuamente mas com toda a boa vontade, congregar vontades, reunir esforços, criar em suma uma “frente comum” na luta contra o AO90: tinha inúmeros conteúdos documentais, tinha ferramentas diversas, tinha até um “fórum de discussão”. Tudo aquilo foi disponibilizado em tempo “record”, a partir de Setembro de 2008, e manteve-se activo — sem grande sucesso, aliás, porque estava “amarrado” à Petição/Manifesto e ao seu “número 2” — até ao lançamento “oficial” da (ideia da) ILC-AO, em Novembro de 2009; o que apenas sucedeu, evidentemente, depois de a dita petição estar, como era previsível e foi expressamente previsto, arquivada, arrumada, posta a um canto sem ter produzido o mais ínfimo resultado concreto.

Quando inicialmente lancei a “hipótese ILC” no Twitter (só um ano mais tarde o projecto foi lançado “oficialmente”, via Facebook), a primeira adesão, entusiástica e sem qualquer reserva, foi de uma espanhola: Rocío Ramos, de Zamora, Leão, Espanha. De imediato secundada, esta primeira activista espanhola, por uma brasileira: Manuela Carneiro, da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. Esta brasileira é, por sinal, portuguesa, de Braga, tem aliás dupla nacionalidade, e aquela “nossa” espanhola é, não por mero acaso, a mais portuguesa de todas as espanholas — adora Portugal, estuda Português, pela-se por tudo o que esteja a jusante do seu Douro natal.

Uns meses depois de ter atirado o barro à parede no Twitter (ainda em 2008), não apenas publiquei um “post” no Facebook sobre o assunto como, a bem dizer “à experiência”, criei ali uma página, usando a aplicação  Causes*, que na altura era bem diferente e incomparavelmente melhor do que a porcaria que é hoje em dia*. Publicada essa página, enviei convites aos meus contactos — sempre convencidíssimo de que ninguém iria ligar nenhuma àquilo. Pois bem, grande surpresa, dois minutos depois de ter enviado os convites recebo a primeira adesão: Paulo Pinto Mascarenhas, jornalista. Lembro-me perfeitamente de lhe ter escrito logo a seguir, agradecendo mas também manifestando a minha estupefacção (as adesões sucediam-se enquanto escrevia ao dito jornalista, a “campainha” virtual não parava de apitar) pelo facto de afinal, contra todas as expectativas, a receptividade à ideia estar a ser entusiástica!

Em 10 de Março de 2009 já havia 1.200 apoiantes daquela página em Facebook Causes*, que tinha um título bastante simples mas sugestivo: “Não Queremos o Acordo Ortográfico“. E a tendência era nitidamente de crescimento rápido e exponencial, tendo chegado a atingir, durante dias a fio, uma média de adesões superior a 150. De tal forma que um ano depois já tinha ultrapassado o (surpreendente) total de 47.000 “membros”.

Extraordinário, não é?

Não, não é.

De todo. Não é nada (de) extraordinário ou sequer de especial. Nem significa muita coisa, afinal de contas. As chamadas “redes sociais” em geral e, destas, o Facebook em particular, não passam de meras ilusões de óptica.

Claro que naquela altura tudo estava ainda muito no início, a aplicação Causes* era uma novidade relativamente recente e sobre o próprio Facebook — com as suas páginas e grupos temáticos — o desconhecimento geral ainda era imenso. Éramos todos uns ingénuos, ou, pelo menos, eu cá era um ingénuo do piorio nestas coisas das “causas” em ambientes cibernéticos. Hoje em dia é fácil dizê-lo, porque aprendemos fatalmente com o tempo, ganhamos experiência, mas por aqueles dias (e semanas e meses) ninguém diria isto, esta realidade crua: o número de “adesões” a uma página temática, a um grupo virtual ou a uma Causa no Facebook é absolutamente irrelevante, o total de “membros” pouco ou nada significa de concreto, de prático, de efectivo; cada “adesão”, cada “membro” é apenas um “click” de “rato” num “link”: Like ou Join.

Uma ilusão de óptica, realmente. Que resultou num estúpido erro de cálculo: se há 47.000 “membros”, então basta que dois terços deles subscrevam a ILC.  Ora, isso até poderia ter sido assim, pelo menos em certa medida, mas ninguém sabia, ninguém imaginava sequer, ninguém antecipou que as subscrições teriam de ser exclusivamente em papel – por um lado – e também a ninguém, a começar por mim mesmo, alguma vez ocorreu que há uma diferença enorme entre carregar num dos dois botões de um “mouse”, por um lado, e, por outro, ter de preencher um formulário com alguns dados. Pior ainda, mil vezes pior, se o dito formulário não for electrónico**, preenchido online em qualquer computador, mas se, pelo contrário, tiver de ser preenchido localmente, de forma manual e tendo cada qual de rabiscar (à mão, evidentemente, com uma esferográfica) a sua assinatura no impresso.

E há ainda outra coisa pior por cima do que já era mil vezes pior: ninguém sabia, naquela época, ao certo ou sequer pouco mais ou menos, de quantas pessoas estamos a falar quando se fala do “acordo ortográfico”. Somos 10 milhões no total, certo? 15 milhões, número redondo, se contarmos com os emigrantes e seus descendentes de nacionalidade portuguesa. É assim ou não é assim?

É, é mesmo assim. Mas a quantos destes milhões interessará a “questão ortográfica”?

Vejamos.

Continuemos a funcionar com números redondos, contas por grosso, que não há outras nem outra maneira de as fazer.

Comecemos por não contar com os 5 milhões de compatriotas na “diáspora”, já que, por motivos vários, os pressupostos quanto a tão dispersas e diversificadas comunidades poderiam afectar erroneamente o método de cálculo (com base em dados do “site” da CIA).

Fiquemo-nos então pelos residentes em Portugal continental e ilhas adjacentes.

Descontemos a 10 milhões os menores de idade (16% ou 1,6 milhões), os analfabetos totais (5% ou 500 mil), os analfabetos funcionais (25% ou 2, 5 milhões). Já vamos em 5,4 milhões (10-1,6-0,5-2,5).

A estes 5 milhões e 400 mil pessoas há que subtrair a esmagadora maioria que anda na luta, sim, mas na sua própria luta quotidiana, tentando sobreviver o melhor possível, o que não deixa grande vagar para outras lutas, sejam elas quais forem, e de mais a mais em se tratando de algo que de forma alguma põe comida na mesa. Falamos, portanto, daquilo que vulgarmente se designa por “massas”: 9 em cada 10 pessoas.

Se descontarmos esta esmagadora maioria de 90% ao total da população, teríamos 9 milhões e restaria um milhão; depois, a este milhão restante iríamos subtrair as parcelas de analfabetismo e de menoridade, pelo que restariam cerca de 600.000 pessoas. Caso, de outra forma,  descontemos aos 5,4 milhões anteriormente apurados os tais 90% gerais, então seriam 4,86 milhões a menos e restariam, por conseguinte, as mesmas 600.000 alminhas apuradas com o primeiro método de cálculo. É este, por conseguinte, o universo de cidadãos que podemos considerar quanto à “questão ortográfica”, o total de portugueses aos quais o AO90 pode interessar de alguma forma.

Porém, até a este universo de 600.000 almas podemos e devemos retirar diversas fatias, como quem tasca um Gruyère (aquele queijo que tem mais buracos do que queijo), a começar pela talhada maior, a do funcionalismo público: quantos professores, técnicos, dirigentes, quadros e outros funcionários do Estado se atrevem a sequer mexer uma palha contra o AO90? Numa estimativa muito optimista, arriscaria uns 20% de um total de 500.000.

O que vem a dar, no final de contas (100.000 na função pública mais 100.000 no sector privado), algo como 200.000 pessoas. Portanto, isto equivale a uma percentagem final tão espantosa  como, se calhar, surpreendente: 2%! A “questão ortográfica”, o AO90, esta luta interessa a 2% dos portugueses…

E ainda assim, mais uma talhada (das grandes), sabendo que deste universo pelo menos 1/3 é constituído por acordistas, bem, então chegamos à seguinte (triste) realidade: há em Portugal 133.000 cidadãos que se opõem de facto ao “acordo ortográfico”. Pronto, está bem, arredondemos “para cima”: 150.000. De acordo? Óptimo. Ou péssimo, consoante a perspectiva.

A petição/manifesto chegou às 113.206 assinaturas… electrónicas***. A nossa página no Facebook (em Causes) chegou a ter mais de 120.000 “membros”electrónicos, salvo seja.  Não brinquemos com coisas sérias. Não é de todo a mesma coisa, como vimos: carregar numas teclas em qualquer computador não tem absolutamente nada a ver com preencher e assinar à mão um formulário, enviando-o depois pelo correio. Conforme sabemos agora, 10% destes  cidadãos portugueses deram-se mesmo ao trabalho (que não foi inventado só para chatear as pessoas, é uma exigência legal) de subscrever, em papel, a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o AO90. Terá sido este um mau resultado?

Bem, não tão mau, ainda assim, do que sucederia caso fosse necessário, em vez de preencher e enviar um formulário, ir a uma assembleia de voto responder, apenas com uma cruz e só a uma pergunta, “sim” ou “não”.  E isto no muito pouco provável de toda a gente entender ao certo a pergunta e as implicações da resposta. Caso se tentasse fazer em Portugal um referendo sobre o AO90, coisa da qual a esmagadora maioria da população jamais ouviu sequer falar ou em relação à qual devota a mais profunda indiferença, não apenas os efeitos não seriam vinculativos como nem mesmo se atingiriam os mínimos (de afluência às urnas, uns 20%, digamos) que pudessem constituir um “sinal político” pelo “sim” ou pelo “não”.

Por alguma razão esta e outras vias de luta alternativas foram postas de lado. Não foi nem por palpite nem, muito menos, por simples “esquecimento”. Seria um pouco estranho que tão “genial” como inexequível ideia nos tivesse escapado, não é verdade?

Ora bem. Por isso mesmo, depois de arquivada a petição/manifesto de VGM, lançada uma ideia que foi colhendo bastante aceitação, era então mais do que urgente avançar com a ILC pela revogação da entrada em vigor do AO90.

2008 já lá vai, 2009 já quase se foi, vem aí 2010. Ao trabalho!

 


*A aplicação Facebook Causes mudou completamente, para pior, sob todos os aspectos, em Novembro de 2012. Alguns conteúdos foram desactivados, os respectivos endereços alterados e desapareceram várias ferramentas e utilitários. Foi inutilizada, portanto.
**Estava montado e já a funcionar, no “site” da ILC-AO, um sistema de subscrição “online” com diversas rotinas de segurança e com verificação tripla.
***É possível que tenha havido algumas subscrições manuais. Desconheço esses números.

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