Uma história (muito) mal contada [VII]

passos_perdidos.jpgTrago comigo, todos os dias, o espanto de saber que semelhante bicho foi congeminado. E não só foi congeminado, como nasceu. E não só nasceu, como anda por aí.
Rui Valente

Os passos perdidos

O que é, afinal, o aborto ortográfico? Mesmo sabendo-se quem o pariu, quando, porquê, onde e como (e até quem assistiu à operação), muita gente ainda não percebeu ao certo, ou sequer vagamente, o que diabo vem a ser aquilo.

Como o caso é sério, vamos tentar diversas formas de abordagem, sendo que, para o efeito, e dada a absoluta impossibilidade semântica de explicar o inexplicável, podemos apenas tentar ilustrar por amostra não o que é o “acordo” mas o que é o acordismo.

O acordismo é um fenómeno de dependência “derivado aoCavaco; daí os seus malefícios. Duas espécies de droga, portanto: o tabaco não é uma “droga dura”, como se costuma dizer, enquanto que o acordo é uma droga dura, sim, aliás duríssima, e portanto ambas as drogas têm um potencial de efeitos devastadores em órgãos distintos e em tecidos diferentes.

Porque de facto, ressalvadas as devidas diferenças entre “drogas duras” e o seu oposto, as “drogas moles” (ditas “leves”), o acordismo é como o tabagismo: coisa da moda, algo que (aparentemente, para os espíritos mais infantilizados) dá pinta e estatuto. Inalar o fumo do tabaco é perigoso, assim como é tóxico engolir as patranhas do AO90. Tóxico não para os pulmões, mas para o cérebro. O tabaco pode destruir os nossos tecidos pulmonares, o acordismo ameaça afectar gravemente os nossos tecidos social, cultural, histórico e patrimonial. Como rezam os caridosos avisos nos maços de cigarros, o risco de cancro é certo, uma morte “precoce e dolorosa” muitíssimo provável. Pelos vistos, a julgar por alguns exemplos de “agarrados” ao “acordo”  (atente-se nos casos clínicos mais evidentes, Malaca, Bechara, Reis, Canavilhas, Estrela,  Infante, Sócrates), o acordismo é letal porque altamente viciante; deve haver no AO90 alguma substância química equivalente à nicotina (ou a outras com igual terminação em “ina”, bem mais violentas), visto que o alcatrão — o principal ingrediente do AO90 –, só por si, não gera  dependência física ou psíquica nos consumidores.

O acordismo é também, por assim dizer, uma forma enviesada e desviante de escutismo; visualizemos a imagem do escuteiro hiper-activo e super-diligente que obriga uma velhinha a atravessar a rua, à força, e quanto mais ela protesta mais ele a empurra, chega a arrastá-la pelos cabelos, dá-lhe porrada se ela resiste, acerta-lhe uns calduços no venerável carrapito branco; quanto mais a anciã protesta, (o que é isto, jovem, eu cá não quero atravessar a rua, diacho, largue-me, mas que coisa), mais o escuteiro lhe garante que ela quer mesmo atravessar, sim, senhora, que do outro lado da rua é que é bom, que neste passeio aqui ele é só meliantes e chatices, vá lá, minha senhora, ande, despache-se, mexa-me essas pernas, vai ver que depois me agradece.

O acordismo é ainda, na imodesta opinião dos próprios acordistas, modernismo e progressismo. Coisas giras, por conseguinte. Bastará recordar-se a gente dos antónimos respectivos para que se entenda a “estratégia” acordista quanto à selecção criteriosa daqueles dois chiquérrimos substantivos, que são imensamente bem quando servem para adjectivar as pessoas normais: pois claro que o contrário de “moderno” é “antiquado” (ultrapassado, obsoleto, inútil) e o inverso de “progressista” é “conservador” (reaccionário, “velho-do-Restelo” ou simplesmente “velho”, essa coisa horrorosa).

Imagine-se então, como protótipo do acordista, um jovem escuteiro que, ainda por cima, é progressista. Um verdadeiro filme de terror, não é? Pois é, mas andam por aí à solta alguns exemplares desta espécie escutista de terceira ordem.

Veja-se o “espetacular” caso do «escritor ficcionista e empresário» Nuno Artur Silva, que fez o favor de partilhar connosco, os velhotes reaccionários de Portugal, esta genial e imensamente progressista reflexão:  “devíamos escrever todos brasileiro“. E diz isto, note-se, com pujança, com cagança, num estilo marialva e muito práfrentex, a imagem de marca dos acordistas.

Ou aquel’outro jovem exemplar, o “ator” Ricardo Pereira, que é fluente em duas línguas, Português e “brasileiro”. Existem diversas gravações em que o dito fala exclusivamente em “brasileiro” mas há uma, mais “especial”, em que o dito jovem fala do “sutáqui dji pôrrtugáu”, garantindo que ainda utiliza “o pôrrtugueiss dji pôrrtugáu todo djia”.  E pergunta-lhe o repórter: “o teu sotaque já ’tá bem mais neutralizado, né?

Ou ainda, para finalizar este tríptico de monstruosidades, oiça-se (e veja-se) Durão Barroso, ex-Presidente da Comissão Europeia e ex-Primeiro-Ministro de Portugal, tentando (desesperadamente) falar em “brasileiro” numa entrevista a uma televisão brasileira. Faça-se-lhe a justiça de notar o “sutáqui” caprichado, a elegância do porte verborreico e, em resumo, o seu compenetradíssimo ar de aluno bem comportadinho que tenta falar na língua dos indígenas quando vai numa visita de estudo.

Este último caso, se bem que nem seja dos mais chocantes, é apenas uma amostra — sintomática, porém — da forma como funciona a cabecinha não apenas do acordista em geral como do político tuga em particular. Demonstração tão espectacular quanto desarmante de um bizarro deslumbramento pelo “gigantismo” do Brasil. Gigantismo esse que lhes inspira, aos políticos tugueses, um forte sentimento de pertença a uma coisa avassaladora, magnificente e magnífica: algo que vagamente lembra a expansão marítima, a saga dos Descobrimentos ou, em suma e por atacado, o V Império — nada mais, nada menos, o Império “Lusófono” ou, à falta de melhor, o II Império brasileiro.

Deslumbramento este que alguns levaram a um extremo impossível, até à mais abjecta subserviência quanto a tudo o que venha do lado de lá do Atlântico, uma admiração acéfala, parola, embasbacada, pelo “gigante” emergente sul-americano, por tudo o que “cheire” a brasileiro, ainda que apenas reminiscentemente, o ouro, os diamantes, o futebol, o cimento, o pau-Brasil em sentido figurado.

Foi, pelo menos parcialmente, sob este cenário neo-imperialista que o chamado “centrão”, os partidos políticos do “arco da governação”, PS e PSD, fizeram passar a tremenda aldrabice no Parlamento. Foi por isto e foi também por motivos bem mais objectivos e comezinhos: por uma questão de “disciplina partidária“, por não saberem sequer, ao certo, aquilo em que estavam a votar, mas também — nos casos dos deputados mais “militantemente” acordistas — porque se tinham deixado deslumbrar por um sentimento neo-imperialista que parecia prometer um novo mundo de oportunidades; com sorte, quem sabe, se calhar até algumas oportunidades pessoais.  Influiu neste processo, igualmente, e provavelmente até mesmo de forma decisiva, o chamado “jogo político” (vocês deixam passar agora o nosso projecto-de-lei, depois nós deixamos passar o vosso); quantas reuniões “informais”, quantas negociações avulsas, quantas conversas “de pé-de-orelha” se terão cochichado naqueles palacianos passos perdidos para garantir a aprovação da maldita Resolução parlamentar?

Não será pelo menos “um bocadinho” estranho que tão patente quanto absurda vigarice tenha sido aprovada por esmagadora maioria, com apenas quatro votos contra, com apenas dezassete abstenções e com algumas ausências extremamente convenientes no exacto momento da votação?

Mas, realmente, terá então passado pela cabeça de alguém que todas estas “coincidências” pudessem permanecer para sempre ignoradas, que jamais fossem descobertas, denunciadas e, por fim, contestadas, combatidas até à exaustão?

Esqueçamos as “teorias da conspiração“, pelo menos até ver, isto é, até que o tempo faça com a verdade o que a água faz com o azeite. O AO90 resultou de uma sequência de azares, é verdade, mas não foi a assinatura do Tratado, em 1990, que gerou a balbúrdia, o cAOs, o conflito;  foi a aprovação da Resolução parlamentar n.º 35 em 2008. O Tratado poderia ter continuado esquecido, a marinar até à eternidade numa gaveta, visto que toda a gente sabia que aquilo era absolutamente inútil e estúpido e inexequível; gaveta essa onde aliás marinou mesmo ao longo de abençoados 14 anos, esquecido de todo e ignorado por todos.

Então, assim sendo, a ver se a gente entende a coisa, vamos a datas, que as datas são aparentadas com o azeite.

Pois se esteve tudo posto em descanso de 1990 a 2004, o que terá sucedido ao certo para que de repente (e à pressa) a CPLP tivesse aprovado em S. Tomé, a 25 de Julho de 2004, o 2.º Protocolo Modificativo?

E porque terá o Brasil ratificado esse Protocolo apenas três meses depois, em Outubro desse mesmo ano? E porque terá Cabo Verde ratificado aquilo seis escassos meses após o Brasil, em Abril de 2005? E, por fim, porque terá S. Tomé e Príncipe ratificado aquilo também no ano seguinte, isto é, em Novembro de 2006?

Porquê só três dos então sete países da CPLP? Terá sido porque o tal Protocolo Modificativo alterava de sete para três o número de ratificações necessário para que o AO90 passasse a vigorar em todos os sete?

Não é preciso grande perspicácia, digo eu, para perceber imediatamente a marosca: pois é claro que o plano era tornar o AO90 “obrigatório” em toda a CPLP através de um expediente que não passa de uma escandalosa aldrabice, um atropelo a todas as regras do Direito internacional, da Convenção de Viena.

Daí também a extrema urgência em dar a extrema-unção à Língua Portuguesa: só faltava a aprovação do II Protocolo, ou seja, da aldrabice, por parte de Portugal, o que equivaleria tacitamente a uma quarta ratificação. Isso já não seria tecnicamente necessário (com as três ratificações existentes, o AO estava automaticamente ratificado por todos) mas faltava o sancionamento da “pátria” da Língua; daria imenso jeito que assinasse também, essa suprema humilhação iria acabar por convencer os restantes (e, em especial, Angola, que resiste ao acordo ainda mais do que a velhinha ao escuteiro) e, sobretudo, se Portugal ratificasse a tremenda aldrabice isso iria atenuar um pouco o mau aspecto da coisa. Portugal ratificou o 2.º Protocolo Modificativo do AO90 no dia 16 de Maio de 2008, através da aprovação, por esmagadora maioria, da Resolução da Assembleia da República (RAR) 35/2008.

Muito mais se poderia dizer sobre isto, que é fundamental para que se entenda o que aconteceu, mas sobra ainda uma questão igualmente determinante para a qual é bem provável jamais venhamos a obter uma resposta concreta, comprovada, irrefutável: porquê 2004?

O que terá sucedido ao certo nesse fatídico ano de 2004, entre Janeiro e Julho? E a coisa não poderia vir já do ano anterior, 2003? Ou até, porque não, de 2002? O que mudou afinal (em Portugal e no Brasil) nesses primeiros anos do século XXI?

Já agora: o que sucedeu cá no torrão em 2006, mais concretamente em Março? Alguma coisa a ver com S. Tomé, que também tinha de ver para crer?

As respostas implicam, obviamente, a necessidade de alguma pesquisa, de bastante esforço de memória, mas, sobretudo, carecem de um módico de raciocínio.

Ficam então as perguntas, por conseguinte, à laia de pistas, assim como fizeram Hansel e Gretel* com bolinhas de pão para encontrar o caminho de volta a casa.

 

cropped-logobadge1.png


Fotografia de Parlamento.pt

[R1_141115]