O estado do direito democrático – 2
A borra? Qual borra? Não há borra. Isto ele é tudo gente fina. Enfim, não há borra mas há espuma, babugem.
As hostes acordistas estratificam-se em três classes sociais: a alta burguesia, a gente-com-dinheiro-que-até-mete-nojo e a aristocracia aspirante. É claro que toda esta malta “de algo”, como sucede pelo menos desde que em Paris cortaram o lindo pescoço de Maria Antonieta ou em Lisboa quebraram os ossos aos Távoras, carece imenso de seus lacaios, mordomos, homens-de-mão e fieis escudeiros, enfim, de todo um arraial de serviçais que providenciem de forma expedita o que mandarem suas (deles) Excelências. É precisamente com os serviçais que temos nós outros de batalhar, ora pois, que os senhores não se chegam à frente, é o chegas, e por isso mesmo alguns ingénuos entretêm-se amiúde a tergiversar com paus-mandados, testas-de-ferro, simples marionetas que apenas sabem papaguear o que lhes foi ordenado pelos respectivos patrões.
Disto resultam aquelas intermináveis discussões técnicas sobre o AO90, que já todos lemos (a granel) e cuja utilidade se resume a servir na perfeição os objectivos dos ditos “patrões”, ou seja, é um passatempo — em sentido literal. Os pareceres anteriores à aprovação chegam e sobejam para desmontar os pressupostos “técnicos”, o cAOs vigente chega e sobra para demonstrar as suas consequências.
De resto, convenhamos, a estratégia de entreter o pagode com as parvoíces debitadas por mercenários a soldo foi muito bem urdida: o tempo joga a favor dos verdadeiros acordistas, aqueles que manobram na sombra. Trata-se de intoxicar a chamada opinião pública, portanto, mas é principalmente uma questão de “timing“: como sabemos, glosando a célebre máxima de um dirigente da bola, também ele pertencendo à classe social da gente-com-dinheiro-que-até-mete-nojo, “o que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira“.
Já tenho afirmado, em resposta a essa questão colocada por jornalistas, que o acordo que Portugal assinou há vários anos atrás (porque tal acordo já foi assinado) não representa nenhum benefício para a língua e cultura portuguesa, pelo que não traria qualquer prejuízo que não entrasse em vigor. De resto, não vejo qualquer problema em que o português escrito possa ter grafias um pouco diferentes conforme seja de origem portuguesa ou brasileira. Antes pelo contrário, ajuda a mostrar a diversidade das expressões e acentua os factores de diferenciação que nos distinguem realmente e que reforçam a nossa identidade. Aliás, considero míope a visão de que o mercado brasileiro de cultura passará a estar aberto aos autores portugueses em razão da homogeneidade da grafia, pois que o interesse desse mercado pela nossa produção só pode depender do real interesse pelas nossas especificidades e aí a suposta barreira do grafismo não chega a ser uma barreira, pode ser um factor de distinção que acentua o interesse pela diferença.
Com os melhores cumprimentos
Pedro Passos Coelho
Publicado originalmente no blog “Cenáculo de um (pseudo) filósofo“, em 20 de Maio de 2008, da autoria de Ruben D. Reproduzido no “site” da ILC-AO em 22.06.11.
Ora, como dizia uma senhora da política, lá vem outra citação, “o senhor sabe que eu sei que o senhor sabe que eu sei” que mentira é mentira e que verdade é verdade. Não é “consoante” coisa alguma.
Mas na política, especialmente em países que têm uma relação problemática com a verdade, pelos vistos, vale mesmo tudo e portanto, cá vai mais uma citação, caramba, já estamos a ficar monótonos, desta vez apenas uma singela palavrinha de não menos lapidar e singelo político: “habituem-se!”
Claro que a “recomendação” foi proferida em contexto diferente e tinha outros destinatários, mas serve na perfeição para ilustrar o conceito.
Habituem-se a quê, afinal? À vigilância constante, ao controlo remoto, ao sequestro da correspondência, às escutas sistemáticas (ou esporádicas), à devassa da vida privada?
Habituem-se ao arbítrio, ao abuso de poder, à imposição selvagem de uma mentira descabelada?
Habituem-se ao esmagamento da personalidade porque nem a objecção de consciência nos é permitida?
Pois bem, mais uma vez tenho de parafrasear, peço desculpa, “não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes”, ou seja, maus hábitos.
«É que isto não é uma questão linguística, é uma questão política.»
Malaca CasteleiroJornal Expresso, 20.02.08
Já cá se sabia.
Mas assim como não têm os cidadãos livres qualquer motivo para se deixarem intimidar por ameaças, também não têm de acreditar em tudo aquilo que lhes sopram aos ouvidos (ou lhes enfiam pelos olhos adentro). Pelo contrário, de resto: não existe cidadania sem liberdade e não existe liberdade sem consciência, pelo que é um dever cívico de todos a participação activa nos assuntos da res publica, através do escrutínio responsável (e responsabilizante) dos seus representantes nas instâncias do Poder, ou seja, dos políticos — e em especial das suas mentiras.
Mentiras essas que, no que respeita ao “acordo ortográfico”, são fabricadas em quantidades industriais, como já vimos e continuaremos a ver; surgem continuamente, umas atrás das outras, as patranhas.
“Há resistências de algumas pessoas, e não são muitas, que têm uma relação emocional, clássica, física e sensorial com a Língua. Mas ninguém será abatido, preso ou punido se não aderir às novas normas. O Acordo é uma simplificação da Língua.”
[José António Pinto Ribeiro, ex-Ministro da Cultura, in semanário “Expresso“, 19.08.08.]
Então e os alunos — que não podem recusar a “simplificação”?
Então e os magistrados — que são efectivamente punidos se não aderirem às “novas normas”?
Então e os funcionários públicos, todos eles, que são obrigados a usar aquela porcaria — ou arriscar um processo disciplinar e, portanto, sofrer sanções, despromoção ou até mesmo irem para o olho da rua?
Então e os jornalistas, que idem, aspas, outro tanto e igualmente?
E então todos nós, simples leitores, que temos de levar com aquilo em tudo quanto é livro, jornal, revista, legendagem, cartaz, folheto ou factura e até nos programas de computador?
Nada disto é punição, Sr. ex-Ministro da Cultura? Processos disciplinares, castigos, despromoções, despedimentos, reprovações, e o diabo, tudo isto é uma brincadeirinha, Sr. ex-Ministro?
Forçar um ser-humano (normal) a ler textos cheios de erros ortográficos não é “ser punido”, senhores políticos? Não é uma violência obrigar os cidadãos a utilizar aquela coisa para redigir um simples requerimento a qualquer serviço do Estado?
Deixemo-nos de governamentais rodriguinhos.
A questão é política, sim, mas é também (ou principalmente) económica. A maioria que determinou a entrada em vigor do AO90 não resultou dos votos dos deputados do Partido A mais os do Partido B a que se somaram os do Partido C. Nada disso. Essa maioria proveio de uma única “bancada”: a do Partido D, ou seja, o Partido do Dinheiro. Ao contrário dos outros Partidos, o PD não é nem vermelho nem verde nem azul nem cor-de-rosa nem cor-de-laranja — porque o dinheiro não tem cor.
Por alguma estranha razão, passaram totalmente despercebidas do “grande público” certas afirmações que Maria Alzira Seixo proferiu publicamente em mais do que uma ocasião. Afirmações estas que, na minha opinião, não apenas retratam fielmente o fulcro da questão (política mas principalmente económica, repito) como anulam quaisquer especulações sobre o assunto.
- [3′:10”] Já fui acusada de muitas coisas, para além de estar em muitas listas negras e para além de várias dificuldades com que tenho deparado na minha vida profissional desde que, em 2008, tomei posição contra o acordo ortográfico.
- [14′:12′] Há três razões para esta loucura gananciosa que dá pelo nome de acordo ortográfico. Que é completamente louco e parte de um objectivo de ganância. Dir-me-ão: mas ganância porquê?
- [22’40”] A grande razão, qual era a grande razão política? Era uma razão de país diminuído e que se quer afirmar; temos não sei quantos milhões de falantes, temos que entrar na ONU e sobretudo o Brasil está a crescer, vai-se afirmar e nós vamos atrás do Brasil, portanto temos que ir com o Brasil, portanto tem que ser um Português único para que não seja a variante brasileira que se siga nos documentos oficiais da ONU.
- [35′:30”] E depois vem debilitar muito, economicamente, todos nós; aliás, já debilitou; eu não sei até que ponto o acordo ortográfico não foi um dos tais representantes do «viver acima das possibilidades das pessoas» de que tanto se falou e que não é bem assim, mas nisso foi. Nisso foi, porque obrigaram muita gente a gastar e depois os editores… e peço desculpa, isto tenho que dizer… porque agora a bola de neve constituiu-se… e uma vez que o acordo entrou em vigor por indicação do Ministério e que os manuais escolares e os dicionários começaram a escrever-se com o acordo, se agora quisermos voltar para trás, e queremos, a maior parte das pessoas querem, o que é que acontece? Acontece aquilo que eu não sabia e que provavelmente a maior parte das pessoas não sabe: é que o Ministério não pode, porque os editores assinaram um protocolo com o Ministério, segundo o qual — e isto é feito nas costas da população e a população não sabe — o Ministério tem que indemnizar regiamente os editores da despesa que já foi feita.
A Professora Doutora Alzira Seixo não iria atirar esta importantíssima informação “para o ar”, assim, sem mais nada, só porque ouviu dizer não sei quê não sei onde a não sei quem. Aliás, a gravação aqui reproduzida é de Março de 2013, mas já antes a tinha eu ouvido dizer o mesmo, no jantar que se seguiu a um evento no Instituto Goethe, em 9 de Janeiro de 2012.
Falta agora “apenas” descobrir esse tal “memorando” celebrado entre o Estado e as editoras. Note-se, quanto a este importantíssimo, decisivo “detalhe”, que não se trata de um contrato entre determinado Governo e certas editoras, trata-se de um compromisso assinado entre o Estado português e entidades representantes dos editores nacionais. É algo de perene, portanto, sem prazo de validade, independentemente de qualquer statu quo partidário, de qualquer maioria parlamentar ou do gabinete governamental que venha de futuro a entrar em funções. Existindo de facto uma cláusula de “régia indemnização” e sendo essa a única forma de resolução constante do dito “memorando”, então já sabemos quem realmente são os “donos disto tudo”.
E se isto não explica, pelo menos em boa parte, a “teimosia” dos Partidos do chamado “arco da governação” na protecção férrea ao AO90, então, se calhar, já mais nada poderá explicar grande coisa nesta matéria.
Porque é que as sucessivas maiorias parlamentares continuam cegas, surdas e mudas quanto à contestação ao “acordo ortográfico”, a sua inutilidade, os incalculáveis prejuízos que acarreta?
Eis aí uma resposta, clarinha como água: dinheiro.
Não é o único motivo, pois claro, mas de qualquer forma esta História já começa a ficar (muito) menos mal contada.
Imagem de Hiroshi Bogéa.
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