A fronteira de Zamora
Há mais fronteiras para além das territoriais, sejam elas naturais ou políticas. Há também as fronteiras morais ou ideológicas e ainda as temporais. Em qualquer dos casos, uma fronteira é sempre uma linha imaginária que se pode desenhar fisicamente, por exemplo com um risco pintado transversalmente numa estrada, ou que se pode traçar apenas mentalmente — o tipo de linha fronteiriça mais sólido e perene que existe.
De facto, as fronteiras nacionais entre Portugal e Espanha ficam um pouco mais a Oeste da cidade leonesa de Zamora, mas esta história poderia dividir-se, como se faz com a.C. e d.C., em antes de Zamora (a.Z.) e depois de Zamora (d.Z.). Trata-se portanto de uma fronteira temporal, não física, e representa um marco muito significativo: dali (ou de então) em diante, tudo seria completamente diferente.
Os anos de 2008 a 2011 foram, por isso, uma espécie de pré-história da nossa luta contra o AO90: em 2008 aventámos a possibilidade de se avançar com uma ILC, em 2009 começámos a estruturar o movimento, 2010 foi o ano do lançamento da iniciativa propriamente dita e em 2011 reunimos apoios, juntámos esforços, promovemos e consolidámos a ideia de que o “acordo” poderia ainda vir a ser derrotado.
Mas não estava nada fácil, convenhamos. Ao longo daqueles quase quatro anos, até aos primeiros meses de 2012, parecia que a governamental “política do facto consumado” se tinha já instalado definitiva e irreversivelmente: na verdade, muito pouca gente acreditava sequer fosse ainda possível fazer alguma coisa para travar o passo àquele crime de lesa-património.
Fez-se o que se pôde, porém, nesses dificílimos tempos. E a pouco e pouco, muito lentamente, com a persistência que advém da convicção firme, fomos conseguindo fazer passar a mensagem, reunindo informação e contactos, recrutando voluntários e apoiantes (até no estrangeiro), promovendo acções públicas (geralmente com apenas um punhado de activistas), publicando conteúdos de “agitprop” e tentando “furar” o mais possível a cortina de silêncio em que os “media” tinham encapsulado a iniciativa.
Pouco depois do gigantesco balde de água fria que nos foi atirado da Rua do Viriato, onde era a sede do “Público”, recebi um convite para ir a Espanha — ele há mesmo milagres, como se vê, e nem todos são pura ilusão de óptica — “falar sobre o AO90” na Fundação Rei Afonso Henriques, em Zamora.
Foi tudo (excelentemente) tratado, arranjado, organizado pela nossa camarada Rocío Ramos, escusado será dizer. Por mim, apenas teria de arranjar alguém para conduzir nas viagens de ida e volta, já que iria precisar do tempo do trajecto para rever notas e documentos, reavivar memórias, ensaiar minimamente o “discurso”, digamos, e as perguntas da assistência a que provavelmente teria de responder. Viajando no próprio dia, iríamos chegar apenas uma hora antes do evento e ainda seria necessário mudar de roupa…
Ah, a propósito, por falar em roupa.
Na segunda-feira anterior à data marcada fui, como de costume, buscar a trouxa à lavandaria. Por desfastio e por simples descargo de consciência, perguntei à dona da dita lavandaria (como andava há dias a perguntar a toda a gente) se “por acaso não conhece alguém que precise de ir a Zamora, não?”
–Zamora?
–Zamora. Espanha.
–Quando?
–Tenho de estar lá na próxima quinta-feira, dia 2, o mais tardar às 7 da tarde.
–Em Zamora?
–Em Zamora. Espanha (não sei se já tinha dito).
–Ok. Eu levo-o.
–Hem?
–Eu levo-o lá. Não conheço Zamora.
–Errrrrr…
–Temos de sair daqui às quantas?
–Errrrrrrrrr…
–São aí uns 500 quilómetros, não? Cinco horas de caminho, vá. Pelo seguro, saímos daqui à uma da tarde.
–Errrr… ok…
–Ok. Até quinta-feira, então.
–Errr…
Pronto, foi isto. Aliás, “nossa” Ana Almeida é assim mesmo, zás, trás, pás, já está. Daí o meu acesso de gaguez (ou entupimento) no diálogo, peço desculpa.
Correu tudo muito bem na viagem menos um “piqueno” pormenor: ambos nos esquecemos de que os espanhóis têm o ancestral vício de se nos adiantar em tudo e por isso, quando chegámos a Zamora, já passava das 7 horas e não das 6, como garantiam os nossos relógios regulados em TMG.
A coisa resolveu-se, a bem dizer, à francesa, isto é, vite-vite-vite: “check in” no hotel, desfazer a mala, tomar banho, fazer a barba e vestir uma fatiota (estava um frio de rachar) em menos de 30 minutos, ora, ora, o que é isso p’rá gente, prontinho, cá estou eu, vamos a isso.
Quando chegámos às (esplêndidas) instalações da FRAH, depois de louca correria, de uma ponta à outra da cidade, posso jurar que não me apercebi de que o termómetro da farmácia mais próxima já marcava 3 graus negativos; aquele “fresquinho” leonês iria bater os menos 7 pela madrugada, mas não havia tempo para dar atenção a isso. O que me ralava um pedaço era aquela impressão estranha na garganta, ameaçando rouquidão, e era outra impressão ainda mais estranha na cabeça, assim como se fossem umas guinadas irradiando para o peito, para os braços, para tudo quanto é músculo.
Gripe. Oh, diabo. Se estar rouco é mau para quem vai palestrar numa palestra, estar de repente com uma gripalhada tremenda é péssimo para o palestrante. Ai, ai, ai, isto vai correr mal, ui, mas que mal que isto vai correr.
Está visto que não somos especialistas em dar palpites.
Enfim, correu menos mal, digamos, atendendo às gripais circunstâncias. Como programado, a palestra realizou-se mesmo no dia 2 de Fevereiro de 2012, às 8 e um quarto da noite (hora de Espanha, é claro).
A sala estava cheia e lembro-me, se bem que de forma enevoada, de que ninguém na assembleia tagarelou com o colega do lado, não houve movimentações na assistência, toda a gente ficou no seu lugar do princípio ao fim da “função”. Só bons sinais, portanto, e das duas, uma: ou os estudantes espanhóis, incluindo os adultos, são muito mais disciplinados do que os portugueses ou então estavam concentradíssimos, fazendo imensa força para entender o meu Português de dois sotaques (Porto e Lisboa), e portanto sequer pestanejavam, mudos e quedos. Lamento imenso não ter sido capaz de me levantar para explicar umas coisas num quadro que lá havia mas, na verdade, a cada minuto que passava ia piorando aquele mal-estar que se nos dá quando a influenza influencia.
Alguém me segredou, à entrada, que “vieram pessoas de longe, até de Madrid”. Para os espanhóis, e em especial para aqueles espanhóis em concreto, todos eles estudantes de Português, o AO90 é uma coisa absurda, ridícula, incompreensível; por isso tinham ido ali ouvir um português falando sobre a Língua que estudam, a ver se finalmente poderiam entender alguma coisinha sobre “el acuerdo ortográfico de la Lengua Portuguesa”. Bom, se calhar falhei em toda a linha neste particular, visto que o AO90 é de facto absurdo, ridículo, incompreensível, e portanto é humanamente impossível explicá-lo. Mas espero ter passado a ideia que ali me levara, ou seja, conseguir explicar que em Portugal se resiste a esse absurdo e se combate aquele ridículo. Porque só isso é compreensível.
Bem, estava de facto perante gente muito especial; são especiais os estudantes espanhóis de Português em Espanha e é espantosa a própria Fundação Rei Afonso Henriques, a sua Direcção, o seu corpo docente e os seus funcionários. Como se já não bastasse terem exemplarmente organizado aquele evento, chegaram mesmo ao ponto de, mais tarde, recolher (88!) assinaturas de apoio à ILC-AO. Note-se, destaque-se, enalteça-se esta coisa extraordinária: são espanhóis que amam a Língua Portuguesa, não podem subscrever a ILC por serem cidadãos estrangeiros mas, ainda assim, com “dados pessoais” e tudo, manifestam publicamente o seu apoio à nossa iniciativa em defesa da mesma Língua que, de certa forma, também é deles.
APOIO À ILC CONTRA O ACORDO ORTOGRÁFICO
Nós, abaixo-assinados, estudantes de língua portuguesa em Espanha, perante a lógica impossibilidade de poder subscrever a Iniciativa Legislativa de Cidadãos por não possuir a nacionalidade portuguesa mas no desejo de colaborar da maneira possível na defesa do Português, APOIAMOS a ILC contra o A090 por considerar que as línguas hão-de evoluir de forma natural conforme a sua utilização pelas pessoas que através delas se comunicam e não por decreto imposto.
Emocionante. É o mínimo que posso dizer.
Como emocionantes foram as manifestações de apreço e as inúmeras gentilezas com que fomos brindados após o evento. Felizmente não perdi a fala durante a palestra mas fiquei literalmente sem palavras depois dela.
E assim terminou aquele gélido dia 2 de Fevereiro de 2012.
O dia seguinte, 3, amanheceu gloriosamente, céu completamente limpo e Sol radioso. Batia exactamente o meio-dia quando recebo uma chamada de Portugal. Rui Valente tinha à mão uma notícia acabada de sair: Vasco Graça Moura suspende AO90 no Centro Cultural de Belém.
Caramba! Reviravolta total.
Acho que me passou a gripe por completo naquele exacto momento. Deviam meter telefonemas daqueles em frasquinhos e vendê-los nas boticas.
O novo Presidente do CCB, nomeado pelo Governo, manda suspender o AO90 — é uma evidente desautorização. Se isto não muda tudo…
Ora cá está, eis uma nova linha de demarcação, chegámos à fronteira entre Antes e Depois.
A cidade leonesa de Zamora é o marco mais relevante da nossa História: foi ali assinado o Tratado que consagrou a independência de Portugal, no dia 5 de Outubro de 1143.
Em comum, não por mera coincidência, o facto de poder haver fronteiras até entre o zero e o infinito, entre nada e tudo, de um lado o desespero e do outro a esperança.
Podemos ir a Zamora, por exemplo e por acaso, e isso é ir ao encontro da História. Ou podemos estar algures, por acaso e por exemplo em Zamora, e a História vir de repente ter connosco.
A fotografia de topo é da autoria de Rita Ferreira Borges, que também participou na organização do evento de Zamora.
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