Uma história (muito) mal contada [XVIII]

“O CCB e o AO90”

No dia 20 de Janeiro de 2012 foi noticiada a nomeação de Vasco Graça Moura (VGM) para a Direcção Administrativa e Financeira do Centro Cultural de Belém (CCB). Alguns dias depois, a 2 de Fevereiro, sai — com imenso e muito justificado estrondo mediático — a notícia de que VGM manda suspender, segundo o semanário “Sol”, ou anular,  garantia o “Diário de Notícias”, ou “manter em vigor a velha ortografia“, como diz a rádio “TSF”, ou ainda, como titulava o “Público”, “dá ordem aos serviços para não aplicarem” o “acordo ortográfico” no CCB.

Mas a notícia bombástica foi, em suma, que o AO90 estava a ser utilizado nos serviços de uma entidade dependente do Estado (Secretaria de Estado da Cultura) e o seu novo Director, nomeado pelo Governo, ordenou aos serviços dessa entidade que deixassem de utilizar o AO90.

Como é normal num país que se pretende livre, cada órgão de comunicação social (OCS) noticiou o acontecimento à sua maneira. As palavras escolhidas para intitular uma notícia não são meramente casuais ou arbitrárias e ainda menos arbitrárias ou casuais são as que se usam no tratamento, no desenvolvimento e na análise dessa notícia. Os conteúdos noticiosos dependem de uma série de factores, a começar pelas orientações (e ligações) políticas específicas de cada OCS e, em última análise, pelas opiniões do jornalista que relata o sucedido.

Ora, sucede que, de mais a mais quando uma opinião se forma (não só mas também) a partir de notícias que são elas mesmas mais opinativas do que noticiosas, qualquer cidadão tem também o direito de exprimir o seu próprio ponto de vista.

Vejamos.

Em relação à polémica decisão de banir o Acordo Ortográfico dos documentos do Centro Cultural de Belém, o recém-empossado director admite que possa ter causado algum incómodo junto do executivo, mas assegura que não houve intenção de afrontar o Governo com esta medida. E defende que sem vocabulário ortográfico comum, preparado com intervenção dos sete países signatários do Acordo através dos seus organismos e instituições, as alterações exigidas à grafia não são sequer aplicáveis.

Excerto de notícia (com ortografia corrigida) do “DN” de 12.02.12

«o recém-empossado director admite que possa ter causado algum incómodo junto do executivo»
“Algum incómodo”? Mas tendo sido nomeado para aquele cargo pelo mesmo executivo, em Janeiro de 2012, não terá o próprio dado conhecimento prévio dessa sua intenção ao executivo que o nomeou? E se houve conhecimento prévio, logo, acordo entre executivo e nomeado, então que “incómodo” poderá ter causado ao executivo a decisão do nomeado?

«mas assegura que não houve intenção de afrontar o Governo com esta medida»
Então qual terá sido, ao certo, a intenção da medida? Seria aceitável que o novo Director do CCB, o mais conhecido (e mediático) adversário do AO90, aceitasse passivamente que o “Lince” lhe devorasse consoantes “mudas”? Que o AO90 lhe estropiasse os textos e que ele mesmo assinasse documentos em “acordês”? Isso não seria uma intolerável afronta, uma desconsideração inadmissível, um verdadeiro insulto para o novo Director do CCB?

«E defende que sem vocabulário ortográfico comum, preparado com intervenção dos sete países signatários do Acordo através dos seus organismos e instituições, as alterações exigidas à grafia não são sequer aplicáveis.»
Ou seja, desde que ou a partir do momento em que passe a haver “vocabulário ortográfico comum”, então, nesse caso, as “alterações exigidas à grafia” já passariam a ser aplicáveis sem problema algum?

Como sabemos, o tal “vocabulário ortográfico comum” — enfim, uma aldrabice qualquer com essa pomposa designação — foi oficialmente apresentado na cimeira de Díli, em Julho de 2014.

Não era e não é esta a única objecção, o único dos impedimentos apresentados por algumas pessoas como sendo condições sine qua non para a não aceitação do AO90: além da referida ausência do VOC, apontam também o facto de o “acordo” não ter sido (ainda?) ratificado por todos os países da CPLP, o que, de facto, à luz do Direito internacional, invalida a sua eficácia (ou efectividade) na ordem jurídica interna dos demais países signatários.

Ainda no âmbito da sua nomeação pelo Governo para o Centro Cultural de Belém, o novo Director refere ele mesmo esta objecção:
«Antigo eurodeputado do PSD argumenta que “o Acordo Ortográfico não está nem pode estar em vigor” porque Angola e Moçambique ainda não ratificaram o documento» [“Expresso”, 03.02.12]

Ora, segundo esta outra linha de raciocínio quanto a factores decisivos (de impedimento), então bastaria os (2) países que (ainda?) não ratificaram o fizessem, por fim, para que tudo estivesse nos conformes?

Portanto, considera-se assim aceitável que o nosso (ou qualquer outro) país fique literalmente refém de uma decisão tomada por um ou por mais do que um Governo estrangeiro? A entrada em vigor do “acordo ortográfico” em Portugal decide-se em Luanda ou no Maputo? Uma lei passa a vigorar em Portugal quando os moçambicanos e os angolanos resolverem decidir isso?

Houve, há e se calhar ainda continuará a haver algumas condições sine qua non deste género que são absolutamente inadmissíveis — por questões morais, de identidade nacional, logo, inultrapassáveis e não negociáveis.

Não queremos dar tiros nos pés, não é verdade? E muito menos queremos chegar ao ponto de, por mero acaso ou por grande azar, de tanto atirar à toa, a esmo, sem fazer pontaria, vir a acertar com um desses disparos na cabeça. Certo? Não queremos essa radical (e irreversível) “solução”, pois não?

Se invocar a falta do VOC ou a falta das ratificações de Angola e Moçambique já é suficientemente mau, se é péssimo porque ficamos sem ambos os pés, então passar ao estágio seguinte é uma total insanidade.

Refiro-me, evidentemente, com esta suicidária imagem, à tese da “revisão” do AO90. Uma coisa é usar (acessoriamente!) o VOC ou Moçambique e Angola como objecções ao “acordo”, outra coisa completamente diferente é utilizar esses argumentos como se fossem barreiras  decisivas. Ora, muito pior ainda, mil vezes pior do que persistir nesses dois (tremendos) erros é apontar… “erros” no próprio “acordo”. Como se o “acordo” não fosse todo ele um (tremendo) erro, de cabo a rabo, sem ponta por onde se lhe pegue. Considerar que o AO90 contém apenas uns quantos “erros” e que, portanto, corrigindo-se esses “erros” deixa de haver qualquer problema, é o mesmo que admitir a viabilidade da “uniformização da língua”, é aceitar que afinal o “acordo” era mesmo necessário, que serve para alguma coisa, que ajuda em algo, que facilita em vez de dificultar enormemente.

Apontar “erros e contradições mais flagrantes” e aceitar as respectivas “correcções” equivaleria, na prática, a termos de saber como se pronunciam as palavras num país estrangeiro para podermos escrever na nossa própria Língua: “corrigir” os casos de novas duplas grafias, por exemplo, implicaria que tivéssemos todos de perguntar a nós mesmos coisas como “no Brasil pronuncia-se o P em «receção»?” Ah, então escreve-se «recePção». “Os brasileiros dizem «perspetiva» ou «perspeCtiva»”? Ah, então é como era dantes cá. Será que eles ‘lêem’ o C em «seCção»? Ah, não lêem? Então como diabo se escreve? Ah, ok, é «seção». E assim por diante. Este horror.

Aceitar que o absurdo pode ser “revisto” (ou referendado) é “dizer” que, em suma, toda a oposição ao “acordo” estava afinal redondamente enganada, que toda a nossa luta foi inútil, que a Causa nunca existiu sequer porque jamais fez sentido.

Portanto, do sumário seguinte sobra apenas a alínea c).

No meio desta vergonha, o mais simples é:

a) reconhecer-se que o AO nunca entrou em vigor por falta de ratificação de todos os estados signatários;

pressuposto essencial da sua aplicação que é o vocabulário ortográfico comum que nem sequer foi iniciado;

c) suspender-se tudo o que se dispôs em Portugal quanto à aplicação do AO, nomeadamente no plano das escolas, dos livros escolares e dos serviços do Estado;

d) tomar-se a iniciativa de negociações internacionais com vista a uma revisão e correcção do AO por especialistas dignos desse nome.

O Acordo Ortográfico é tão mal feito que nem o Brasil o aceita… Logo à nascença, já era um cadáver adiado. Com vénia de Fernando Pessoa, agora não se pode deixar que, sem a necessária revisão, ele procrie seja o que for.

[Transcrição de artigo da autoria de Vasco Graça Moura publicado no jornal “Diário de Notícias” de 02.01.13. https://cedilha.net/ilcao/?p=9039]

A não ser, é claro, que essa “revisão” do AO90 consistisse essencialmente na reposição do que estabelece o Acordo Ortográfico de 1945!

O que aliás estava previsto nas 3 alíneas iniciais da “síntese de medidas rectificativas necessárias” da Petição/Manifesto “Em Defesa da Língua Portuguesa” (2008):

a) correcção das inúmeras imprecisões, erros e ambiguidades do texto actual;

b) eliminação das facultatividades nele previstas ou por ele tornadas possíveis, nos domínios do H inicial (Base II), das consoantes mudas (Base IV), da acentuação (Bases VIII-XI) e das maiúsculas e minúsculas (Base XIX);

c) reposição da questão das consoantes mudas (Base IV) nos precisos termos do Acordo de 1945;

Ah, assim, sim! Apoiado! Venha de lá então essa “revisão” — que afinal o não é de todo. Mas só se for essa mesmo, porque não é de nada disso o que se vai lendo por aí, desde pelo menos meados de 2013, o que originou vários esclarecimentos no “site” da ILC-AO.

Por conseguinte, e em função das notícias mais recentes, vimos de novo dar público conhecimento de que não aceitaremos qualquer “solução” que o não seja de facto, isto é, se consistir, na prática, no protelamento sistemático, no adiamento da questão para as “calendas gregas”, em manobras de diversão várias ou, em suma, em promessas vãs, vazias, desprovidas de sentido e de substância, como é o evidente caso da já muito anunciada “revisão” do AO90.

Não é possível, por definição, “rever” o absurdo para que este deixe de o ser. O AO90 é uma aberração completa, um monstro que nenhuma “revisão” (necessariamente cosmética) poderá tornar “um bocadinho” menos monstruoso.

21.12.13

“Cosmética” porque consistiria em apenas algumas alterações pontuais que deixariam, na prática, tudo na mesma, ou “cosmética” porque equivaleria, também na prática, a repor a situação normal (o AO45), chamando “revisão” àquilo que seria efectivamente a anulação total do AO90. Pois sim, se a operação de “cosmética” fosse esta última, ah, claro, repito, este tipo de “revisão” estaria muitíssimo bem.

Mas, falando a sério, alguém acredita nessa “hipótese”?

Sem qualquer dúvida, o facto de VGM ter mandado retirar o “Lince” dos computadores do CCB teve uma enorme importância política. Menos um animal feroz à solta. A partir daquele dia, nada seria como antes: nem para o bem, já que só então apareceram voluntários e militantes da Causa às carradas, nem para o mal — visto que no meio das carradas vinham também alguns  oportunistas, como favas num bolo-rei.

E por falar em bolo-rei, não deixa de ser uma coincidência com seu quê de irónico este  “cavaquiano” (e encavacante) binómio, o CCB e o AO90. Ao mesmo tempo e no mesmo sítio, VGM depara com as duas incumbências cometidas por Cavaco a Santana: é nomeado para dirigir a primeira e manda anular ali a segunda.

Infelizmente, esse hiato de normalidade no CCB durou apenas cerca de dois anos. Vasco Graça Moura faleceu no dia 27 de Abril de 2014.

A partir de Setembro desse mesmo ano, o bunker da Praça do Império voltou a encher-se de “espetáculos” e de “atividades“.

[R2_261215]

2 Comments

  1. Como sabemos, a estranha relação de Vasco Graça Moura com o AO é anterior ao episódio do CCB. Em nome da coerência, um amante da Língua Portuguesa como VGM não devia sequer ter-se mantido no mesmo partido de Cavaco Silva e de Santana Lopes, ignaros mentores do Acordo. Claro que a coerência tem um preço e este não seria pequeno. Seria isto exigir demasiado a VGM? Não sei. Não seria certamente mais difícil para VGM marcar essa posição de afastamento do seu partido do que é, para um anónimo professor do ensino secundário, opor-se ao Acordo na sua escola. VGM não só ficou no PSD, como aceitou cargos — o de director do CCB seria apenas o último. Claro que, ficando e aceitando, o mínimo que podia fazer para não perder completamente a face seria uma encenação como a que protagonizou, mandando desinstalar o Lince — uma medida que, sem uma verdadeira oposição de fundo, não podia ser outra coisa senão temporária. Estaria VGM de boa-fé, tentando mudar a posição do PSD sobre o AO a partir de dentro? Talvez. Mas, desde 1990, teve mais que tempo suficiente para perceber que, assim, não ia lá. Contestando o AO, mas ficando, VGM limitou-se a tergiversar. Cumpriu, no PSD, o útil papel de contraponto. Com VGM, o PSD aparentou ser um partido plural. E, a cada novo artigo de VGM no DN contra o AO, permitia que os seus ignaros colegas de partido sorrissem e dissessem condescendentes: “ora, lá está o Vasco com as suas diatribes — ah, grande cabeça, este Vasco!”

  2. “Coerência”? Isso não existe em política. Aliás, são conceitos que se excluem mutuamente.

Comments are closed.