Dia: 17 de Outubro, 2015

Uma história (muito) mal contada [XXI]

A resistência tem razões que a razão bem conhece

«Se estamos numa de palpites, deixo o meu: daqui a cinco anos ninguém se vai lembrar das razões de tanta resistência.»
Rui Tavares

Isto dizia Rui Tavares a propósito do AO90, em 24 de Julho de 2008. Quatro anos depois da tavariana “profecia”, a resistência estava mais fervilhante do que nunca.

RT5anos

 

2012 foi de facto um ano de viragem, em todos os aspectos. Em especial depois de franqueada a fronteira psicológica do “2 de Fevereiro”, isto é, a data em que  Vasco Graça Moura anulou o AO90 no Centro Cultural de Belém, os acontecimentos precipitaram-se espectacularmente. Além dos eventos realizados (e alguns falhados), dos sucessos (e certos insucessos), das notícias (e das não-notícias), dos avanços e retrocessos já relatados nesta história (muito) mal contada, houve ao longo desse ano de 2012 outras datas marcantes.

Por ordem cronológica, anotemos algumas delas.

Logo no dia 7 de Fevereiro, também a FLUL* anula o acordo ortográfico, segundo notícia da M80 rádio que posteriormente diversos OCS* viriam a difundir e que nós próprios tivemos o cuidado de confirmar junto da fonte original. Curiosamente (ou não, que já estamos habituados a estas governamentais trapalhadas), a notícia áudio refere que «Contactado pela M80 o Ministério da Educação fez saber que desconhecem o caso, já que as Faculdades são autónomas» mas o facto é que posteriormente, em data indeterminada, pelo menos o “site” daquela Faculdade acabou por ser totalmente arrasado pela máquina trituradora acordista. Ordens do patronato, deduz-se.

Avancemos.

Apenas uma semana após a decisão de VGM* no CCB*, o Editorial de dia 9 do Jornal de Angola — uma espécie de órgão oficioso do Governo angolano — deixava perfeitamente claro que aquele país não ratificou nem ratificará o “acordo ortográfico”; denotam-no com clareza expressões como “nada o justifica” ou “ninguém ouse impor regras“. Numa formulação ainda mais incisiva sobre a Língua Portuguesa, resulta claro que a posição oficial de Angola jamais será a de «pô-la a reboque do difícil comércio das palavras». Apenas alguns excertos desse editorial são o suficiente para entender toda a mensagem.

(…)
A Língua Portuguesa é património de todos os povos que a falam e neste ponto estamos todos de acordo. É pertença de angolanos, portugueses, macaenses, goeses ou brasileiros. E nenhum país tem mais direitos ou prerrogativas só porque possui mais falantes ou uma indústria editorial mais pujante.
(…)
O importante é que todos respeitem as diferenças e que ninguém ouse impor regras só porque o difícil comércio das palavras assim o exige. Há coisas na vida que não podem ser submetidas aos negócios, por mais respeitáveis que sejam, ou às “leis do mercado”. Os afectos não são transaccionáveis. E a língua que veicula esses afectos, muito menos.
(…)
E o veículo utilizado foi o português. Queremos continuar esse percurso e desejamos que os outros falantes da Língua Portuguesa respeitem as nossas especificidades. Escrevemos à nossa maneira, falamos com o nosso sotaque, desintegramos as regras à medida das nossas vivências, introduzimos no discurso as palavras que bebemos no leite das nossas Línguas Nacionais. Sabemos que somos falantes de uma língua que tem o Latim como matriz. Mas mesmo na origem existiu a via erudita e a via popular. Do “português tabeliónico” aos nossos dias, milhões de seres humanos moldaram a língua em África, na Ásia, nas Américas. Intelectuais de todas as épocas cuidaram dela com o mesmo desvelo que se tratam as preciosidades.
(…)
Todos devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP. A escrita é “contaminada” pela linguagem coloquial, mas as regras gramaticais, não. Se o étimo latino impõe uma grafia, não é aceitável que através de um qualquer acordo ela seja simplesmente ignorada. Nada o justifica. Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes do mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras.

[Excertos do editorial de 08.02.12 publicado no “Jornal de Angola“. Texto integral publicado no “site” da ILC-AO em 9 de Fevereiro de 2012.]

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