«A consagração dum desacordo» [Hélio Alves, “Público”]

logo_shareO AO90 e o afastamento entre as variantes da língua portuguesa

Hélio J. S. Alves – 08/10/2015 – 05:40

O AO90 dá tudo, tudo, menos a única coisa que talvez nos interesse na língua portuguesa: escrever e dizer bem.

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Há uns anos, fora de qualquer conversa sobre ortografias e acordos, uma amiga exclamou comigo, quase indignada: “Mas por que razão dizes vàcina?! Escreve-se vacina, toda a gente diz vacina, não percebo essa tua mania.”

Apanhado de surpresa, só podia dizer que não sabia, não tinha pensado nisso. Achei então que aquele A escancarado devia ser algum resquício meu de sotaque nortenho. Mais tarde ocorreu-me que dizer vacina, com aquele primeiro A tépido e preguiçoso, poderia ser outro tipo de sotaque, de Lisboa, já que a minha amiga é lisboeta. E como nunca se fala em sotaque de Lisboa (Lisboa pensa que, sendo Lisboa, não tem sotaque), a minha amiga estaria a ser vítima de mais um caso de lisbonocentrismo (palavra que, se não existe, devia existir). Fosse como fosse, nunca mais esqueci o remoque. E mais tarde percebi o que aconteceu. Eu dizia vàcina, sem o saber, porque a palavra vem do latim vaccina e a consoante geminada no latim produz certos efeitos na evolução das línguas românicas que podem ter a ver, como no caso do português, com a articulação da primeira consoante e/ou com a abertura ou prolongamento da vogal anterior. Um caso de oralidade instintiva. A minha amiga, pelo contrário, dizia vacina porque é alfabetizada e sabe ler. Quer dizer, eu abria muito aquele A porque essa é uma das formas que existem em português para manifestar a presença fónica da palavra latina original. A minha amiga fechava o mesmo A porque, com a consagração da grafia vacina, deixou de ver, e bem, qualquer razão para o conservar aberto.

As reformas ortográficas da língua portuguesa realizadas no século XX (em 1911, em 1945 etc.) transformaram grafias como vaccina em vacina. Contribuíram assim, decisivamente, para a alteração da prosódia, a alteração da maneira como a palavra é articulada nos sons, na sua duração, timbre, ritmo etc. Deixou de existir uma das marcas, um dos sinais, que indicava a pronúncia correcta da palavra. Como tal, a pronúncia foi mudando até chegar àquela vacina de hoje, com o tal A lânguido e abatido.

Uma das consequências mais espectaculares desta mudança ou simplificação ortográfica foi a de afastar o português falado de Portugal do português falado do Brasil. Os brasileiros continuam a dizer vàcina, pelas razões que eles lá saberão, nós por cá já não vemos razões para dizer senão vacina. Com a ideia de unificação gráfica entre variantes da língua portuguesa, o que se conseguiu foi precisamente o contrário ao nível da oralidade. Curiosamente, as mesmas pessoas que defendem tal simplificação e unificação ortográficas são as mesmas que lamentam a forma cerrada como os portugueses pronunciam a sua língua hoje. Pudera! Se as palavras vão perdendo os sinais escritos que indicam a prosódia, como se pode esperar que o português falado de Portugal, onde os níveis de analfabetismo absoluto são cada vez mais residuais, conserve vogais abertas e consoantes articuladas?

O acordo ortográfico de 1990, ao declarar que se deve escrever “receção”, “setor”, “deteta” e “ativo” porque essas palavras se pronunciam assim em Portugal, não somente está a levar ao delírio velhas e bafientas noções de simplificação e unificação, mas está também a construir uma gigantesca mistificação. Essas palavras ainda não se pronunciam assim em Portugal. Mas, como aconteceu com vaccina/vacina, virão em breve a pronunciar-se como surgem escritas, se não se acabar o mais depressa possível com o AO90. Assim, “receção” não vai distinguir-se oralmente de “recessão”, nem “deteta” se deixará de parecer com “de teta”. O AO90 literalmente educa-me para não dizer “activamente”, como eu sempre disse – com aquele primeiro A bem aberto –, mas sim “ativamente”, com aquele A prostrado, historicamente errado, e, ainda por cima, completamente irreconhecível para um brasileiro. Isto é, o AO90 consegue concretizar duas grossíssimas asneiras ao mesmo tempo: deseduca-me como falante do português e presta um péssimo serviço à unidade transcontinental da língua.

Para evitar acusações como aquelas que acabo de formular, o AO90 apressou-se a oferecer alternativas. Certas palavras passam a poder escrever-se de mais do que uma maneira. Com P ou sem P, com hífen ou sem hífen, com acento agudo ou com acento circunflexo, com letra maiúscula ou com letra minúscula, e por aí fora. Salvando assim a unidade da Língua. Haverá escrita para todos os paladares; no fundo, deixará de haver ortografia (“escrita correcta”) para haver, dizem, língua portuguesa. Uma vez que o acordo é, então, a consagração dum desacordo, o absurdo do argumento nem merece resposta. Infelizmente, porém, a sopa-de-letras-para-todos-os-gostos que é o AO90 dá-me todas as opções menos a de redigir vaccina, para perceber donde vem a palavra, como se escreve e pronuncia, e porquê. O AO90 dá tudo, tudo, a portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos e tantos mais, menos a única coisa que talvez nos interesse na língua portuguesa: escrever e dizer bem.

Hélio J. S. Alves
Professor da Universidade de Évora

“In” jornal “Público” de 08.10.15. Transcrição integral. Acrescentei “links”.

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1 Comment

  1. María Oliveira

    Muito, muito bem, Senhor Professor! Clarinho como água! Agora… Alguém consegue fazer passar, transmitir, ensinar, quiçá, esta abanadela de convicções, enfiar este “sapo” pela “gorge” abaixo (já que estamos em maré de sotaques e falares nortenhos) àquele senhor Silva que vive lá p’rós lados de Belém? E a todos os outros ignaros que nos venderam o Património, alguém…? Esse bando de merceeiros mercenários pensa que isto, tudo isto “é o da Joana” e que estamos todos anestesiados, a vê-los escavacar o que nos restava de nosso, de limpo, de intocável, como o deveriam ser todos os legados. Chusma de Broncos!

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