Uma história (muito) mal contada [XIX]

pastapreta1A pasta preta

7 de Junho de 2012. Um dia marcante. Mais uma vez, o problema estava resolvido. Seria desta, finalmente?

Muita água tinha já corrido sob as pontes desde o “2 de Fevereiro“. E, como sucede num jogo de batalha naval, que é brincadeira, mas não deveria acontecer nesta luta, que é séria, foi nessa mesma “água” que acertaram alguns dos nossos “tiros”.

Já tínhamos percebido por aquela altura, meados de 2012, que o destino mais provável da ILC — caso a entregássemos com “apenas” as 35.000 assinaturas exigidas — seria a recusa liminar, a priori, ou então a sua (humilhante)  derrota se porventura chegasse a ser votada no Parlamento.

Havia, portanto, que ir procurando  alternativas.

Por exemplo, sugerir aos deputados que tinham votado contra a RAR 35/2008 que avançassem eles mesmos com uma resolução ou outra iniciativa parlamentar do mesmo teor.

Para os que votaram contra a RAR 35/2008 poderem avançar “internamente” com uma iniciativa (ou resolução) própria teriam de ser pelo menos 23 (10% do total dos assentos parlamentares) e não apenas 4, que foram quantos votaram de facto contra a dita RAR. Ainda que pudessem contar com os 17 deputados que se abstiveram naquela mesma votação, seriam 21 no total: não era suficiente. Acresce que seria muito difícil os deputados do PCP, o único partido que então se absteve em bloco, aliarem-se numa iniciativa legislativa aos seus mais férreos adversários políticos, no mesmo hemiciclo onde todos os dias se confrontam. E acresce ainda que não é lá muito fácil ao povo sequer chegar “à fala” com os seus representantes no Parlamento, quanto mais convidar uns quantos deles, de vários partidos, para conversar placidamente à volta de uma mesa.

Mas foi isto mesmo o que efectivamente tentámos. Já tínhamos encetado contactos nesse sentido, tendo como alvo preferencial alguns dos deputados de diferentes “bancadas” que tinham tomado posição pública contra o AO90.

Um precedente, ainda no ano anterior, tinha entreaberto essa “porta”. Numa mensagem com data de 27 de Abril de 2011.

Não só já enviei por correio a minha subscrição de tal iniciativa legislativa, como enviei também as subscrições de outros elementos do meu agregado familiar.

Como pode verificar abaixo, a frase “O deputado Mendes Bota não se submete ao Acordo Ortográfico. Só por descuido!” consta em todos os email que envio, e só tenho recebido aplausos por essa posição.

Não sei o que pretendem colocar no meu perfil de subscritor e entusiástico apoiante da ILC. Sem qualquer pretensiosismo envio uns resumos biográficos que preparei recentemente, podem utilizá-los ou não, à vossa inteira vontade.

A (profusa e profícua) troca de correspondência com este deputado prolongou-se por todo o ano de 2011 e prosseguiu ainda mais intensamente em 2012. Depois de publicado o seu perfil na “galeria” de subscritores, apoiantes e activistas da ILC-AO, José Mendes Bota assinou também um excelente texto, de incentivo à subscrição da iniciativa, que saiu na edição do jornal “Público” de 3 de Maio de 2012. Por fim,  no dia 7 de Junho seguinte, recebeu-me no seu gabinete do “edifício novo” do Palácio de S. Bento.

A reunião, pessoal e informal, correu muitíssimo bem. Nenhuma hipótese deveria ser descartada à partida, pois claro, e foi o próprio Mendes Bota quem avançou com aquela que poderia ser a estratégia mais expedita (ou exequível) para os fins em vista: envolver deputados de diversas bancadas, sim, mas no próprio Parlamento e a um nível já não estritamente pessoal, mas institucional.

A ideia não seria propriamente “convidar uns quantos deles, de vários partidos, para conversar placidamente à volta de uma mesa”, mas convocar o máximo possível de deputados para uma sessão (ou reunião) extraordinária, no próprio Palácio de S. Bento, em que seria ouvida uma delegação da ILC e enunciadas e discutidas entre todos as diversas alternativas de acção concreta.

O que se poderia sequer imaginar de melhor do que isto? Essa sessão deveria realizar-se para além do horário normal (à noite, portanto), provavelmente na Sala do Senado, com a presença de “dois ou três” oradores principais convidados por nós, com a possibilidade de haver outras participações no debate até de alguma gente, igualmente convidada, na assistência.

Em cima da mesa estariam, à partida, três hipóteses principais:

  1. A apresentação, por parte de um único Deputado ou de vários, de um projecto de lei de conteúdo e objectivos similares aos da nossa ILC, conforme previsto na alínea b) do Art.º 156.º da CRP. Isto evidentemente, desde que fique garantida a liberdade de voto, ou seja, que em sede de reunião de líderes de grupos parlamentares se convencione a abolição da “disciplina de voto” neste projecto de lei em concreto.
  2. A constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (Art.º 178.º – 4 CRP), requerida por 46 Deputados, com a finalidade de investigar todos os procedimentos do processo legislativo que conduziu à aprovação da RAR 35/2008 (II Protocolo Modificativo) e tendo por (óbvia) consequência a apresentação de uma iniciativa legislativa em conformidade.
  3. A apresentação de um pedido de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade da RAR 35/2008, do II Protocolo Modificativo e/ou do próprio AO90, por parte de (no mínimo) 23 deputados de todas ou de pelo menos duas bancadas parlamentares. (Art.º 281.º – f) CRP).

Eram estas as propostas que iríamos apresentar, mas, evidentemente, ficaria sempre em aberto um ponto 4: qualquer outra via de acção concreta que aos próprios deputados ocorresse.

Convidámos vários possíveis oradores para o evento, pessoas de inegável prestígio nas áreas do Direito, da Política, do Ensino e da Literatura, como, por exemplo, o Juiz Rui Estrela de Oliveira e o poeta Pedro Tamen. Tínhamos já conseguido a (simpaticíssima) manifestação de   disponibilidade por parte do Professor Doutor José de Faria Costa, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Bom, pelo menos no plano das intenções aquele era um plano óptimo e nele todos depositávamos imensas (e nada infundadas) esperanças. Tratava-se, no fundamental, destacando o ponto 3 da “ordem de trabalhos”, de suscitar a inconstitucionalidade da entrada em vigor do “acordo ortográfico”; e para que isso fosse feito “apenas” haveria que determinar a via prática mais adequada.

Infelizmente, o tempo foi passando e acabou por não ser possível conciliar as agendas dos vários envolvidos, e por conseguinte aquela “janela de oportunidade” gorou-se:  rapidamente chegou o Verão, vieram as “férias parlamentares”, as pessoas desmobilizaram, o próprio Professor Faria Costa teve de cancelar a sua presença devido a outros compromissos, já que entretanto, de facto, muito tempo (demasiado tempo) se tinha perdido entre antes do fim de uma Sessão Legislativa e muito depois do início de outra.

Perdurou a ideia-base, contudo, que fomos reiterando daí em diante exaustivamente.

E assim, com o concurso não apenas de simples cidadãos como também de deputados de todos os Partidos, teríamos de uma assentada a correcção de um erro colossal e uma saída airosa, em qualquer dos três casos, para o imbróglio político (ou para o beco sem saída a que nos pretende condenar o “statu quo” político-partidário), já que todas as forças políticas seriam solidariamente responsáveis pela anulação do seu próprio erro colectivo. Sem responsabilizações nem culpas nem ónus nem custos de qualquer espécie para qualquer deles.

Pois se não é para interpretar fielmente o sentir do povo, se não é para o representar nas suas aspirações, então para que servem os deputados da Nação? O que estão afinal ali a fazer?

ILC-AO

 

O deputado Mendes Bota foi uma das pessoas mais assoberbadas de trabalho que até hoje conheci. Devo confessar que ter podido constatar isso mesmo in loco foi para mim uma grande  surpresa: entrei no seu gabinete tão imbuído como outro qualquer vulgar cidadão da ideia-feita de que “os deputados não fazem nada”, saí de lá absolutamente convencido de que há uma ideia-feita que está muito mal feita, pelo menos em alguns casos. Aquele deputado, sou testemunha, trabalha (mesmo) mais de 15 horas por dia (7 dias por semana) e, ainda por cima, fá-lo quase completamente sozinho, isto é, sem qualquer “staff” de apoio: por exemplo, enquanto falava comigo ia tirando fotocópias e vigiava ao mesmo tempo duas impressoras que debitavam papel a um ritmo alucinante. A certa altura, toca o telefone; Mendes Bota atende e, enquanto despacha o assunto por voz, retira de uma das impressoras mais uma pilha de papel impresso, escreve qualquer coisa num bloco-notas, faz-me sinal com o queixo (e aponta) para uma pasta branca e levanta um polegar: era o nosso “Dossier Político e Jurídico”, já o tinha visto, parecia-lhe bem. Recordo-me de lhe ter espreitado sorrateiramente para os pés, a ver se ele não estaria ao mesmo tempo, por exemplo, a dar ao pedal num gerador para ter electricidade no gabinete. O homem parecia ter pelo menos quatro braços!

Não há verba, disse, não há quem ajude …

Compreensivelmente, uns meses mais tarde, acabou mesmo por ter de “passar o testemunho”, como designou a “cerimónia”: no dia 22 de Novembro de 2012, João Bosco Mota Amaral recebeu, no seu gabinete do Palácio de S. Bento, uma  delegação da ILC-AO constituída por Hermínia Castro, Rui Valente, Paulo Jorge Assunção e eu mesmo; e Mota Amaral recebeu também, das mãos de Mendes Bota, toda a documentação relacionada com a luta contra o AO90, incluindo, evidentemente, a tal “ordem de trabalhos” para o parlamentar evento que tinha afinal ficado sem efeito.

Esses documentos por ali se quedaram. O testemunho foi efectivamente passado mas não passou, lamentavelmente, dali.

Tenho tudo isto guardado numa pasta preta, nem de propósito.

A paralisação da linha de acção traçada naquele 7 de Junho foi mais um dos (muitos e) muito decepcionantes episódios que fui documentando, ao longo dos anos. Nada obstava, de resto, a que o mesmo projecto viesse a ser retomado, mais tarde, já que oportunidades para tal não faltaram em 2013, 2014 e 2015.

E poderia ainda retomar-se, porque não? Ou passou a haver algo impeditivo de que se faça o que tem de ser feito?

logobadge1

[R1_191115]

2 Comments

  1. Lembro-me de o próprio Mendes Bota dizer que “a pasta” ficava muito bem entregue. Por um lado ele estava realmente muito ocupado. Por outro lado, Mota Amaral tinha um prestígio e um peso institucional incontestável e seria a pessoa ideal para convocar a tal tertúlia informal inter-bancadas. Se há um assunto de interesse nacional, em que as quezílias partidárias não devem ter lugar, esse assunto é o da Língua Portuguesa.

    1. Não seria “tertúlia” e muito menos seria “informal”. Até haveria marcação de faltas, segundo as notas manuscritas que conservo daquela reunião de 07.06.12.

      Revi todo o texto de novo e não encontro a mais ínfima referência a algo parecido com “tertúlia informal” ou semelhante. Pelo contrário. Há pelo menos uma frase que denota precisamente o carácter formal da sessão (ou reunião) programada: «envolver deputados de diversas bancadas, sim, mas no próprio Parlamento e a um nível já não estritamente pessoal, mas institucional».

      E há também uma palavra que faz toda a diferença, neste particular: na frase «convocar o máximo possível de deputados», o verbo é “convocar” e não “convidar”.

      Mas pronto, ainda bem que surgiu a questão, foi uma oportunidade para a esclarecer.

Comments are closed.