Partidários e opositores do chamado Acordo Ortográfico de 1990, posto em vigor desde 2011, juntaram-se recentemente na Academia das Ciências de Lisboa para participarem no colóquio Ortografia e bom-senso*. Foi, se a memória não me falha, a primeira vez em que, num clima de tolerância e de respeito mútuos, personalidades portuguesas e brasileiras, de grande prestígio na área das ciências filológicas, discutiram com elevação um problema que toca a todos os falantes da língua portuguesa.
Por coincidência, na mesma semana do colóquio, uma reunião de trabalho juntou, também na Academia das Ciências, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil e da sua congénere portuguesa, com o objectivo de se criar uma base de entendimento profissional capaz de ultrapassar divergências lexicais, semânticas e sintácticas que ocorrem nos textos jurídicos de ambos os países.
Em ambas as ocasiões tive oportunidade de recordar o ponto-de-vista de quantos – como eu próprio – defendem sem hesitação o direito, inalienável e irrestrito, à Ortografia Nacional, com base em princípios cada vez mais pertinentes, reflectidos no uso da língua, tais como a mentalidade, a educação, o estilo de vida, as relações sociais e os valores éticos da Nação. A ortografia, ao tentar reproduzir em signos alfabéticos os sons da oralidade, deve, antes de mais, respeitar as normas ortoépicas da comunidade falante – e se digo, no plural, “normas ortoépicas” é porque estou consciente das variedades dialectais que ocorrem em qualquer sistema de signos (domínio próprio da fonologia). As línguas, ao contrário do que defendia, por exemplo, o linguista soviético Nikolai Marr – aliás, com a oposição das autoridades comunistas, incluindo o próprio Estaline –, não podem ser analisadas apenas com superstruturas e fenómenos de classe, mas antes como veículos de comunicação adaptados à utilização social que deles se faz.
Quando as regras da ortografia não levam em consideração as particularidades fonéticas de uma determinada comunidade falante, não apenas no momento da fala (visão sincrónica) mas também, em certos casos, ao longo da sua história verbal (visão diacrónica), prestam um mau serviço à Nação, que, por desatenção ou ignorância, põe à disposição do Estado (ou da Nação politicamente organizada) instrumentos de trabalho – como os chamados “Acordos Ortográficos” – redigidos de costas voltadas para a realidade social. Todo o cuidado é pouco nesta matéria, razão por que, na dúvida, a Nação tem o direito de se interrogar acerca da utilidade dos acordos supranacionais que tocam na língua – e, mais ainda, quando esta serve comunidades cuja autonomia cultural é indiscutível.
No caso particular da língua portuguesa falada no continente europeu, no Brasil, em África ou na Ásia, vale a pena lembrar as profundas alterações políticas que se verificaram nos últimos anos. Do país politicamente independente mas ainda culturalmente ancilar, como era o Brasil em 1945, quando se assinou o chamado Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro; desse país que então tinha 40 milhões de habitantes e que hoje tem perto de 200 milhões, passou-se, já no século XXI, a urna super-potência, dita “emergente”, é certo, mas claramente na vanguarda das nações mais avançadas do mundo. Em contrapartida, sem prejuízo de Angola e Moçambique virem a seguir caminho semelhante ao do Brasil, os restantes países lusófonos de África não estão neste momento em condições de utilizarem a língua portuguesa como verdadeiros idiomas nacionais. (Deixo propositadamente de fora o caso de Cabo Verde, país independente já dotado de língua própria, em larga medida criada a partir do português pidginizado.)
«Unidade idiomática do português europeu
muito maltratada»
Seja qual for a evolução do paradigma linguístico de Angola e Moçambique, afigura-se oportuno recordar o essencial da polémica sobre a língua portuguesa utilizada no Brasil, à qual, em tempos, uns chamaram o “português do Brasil”, outros o “português luso-brasileiro” e outros até a “língua brasileira”. Da vasta bibliografia sobre o assunto, sirvo-me apenas – por ordem cronológica – dos seguintes ensaios: A questão da língua brasileira (1957), de Herbert Parentes Fortes; A língua portuguesa e a unidade do Brasil (1958), de Barbosa Lima Sobrinho; O problema sócio-biológico da língua brasileira (1963), de Altamirando Requião; e o já hoje clássico Língua portuguesa e realidade brasileira (1968), de Celso Cunha.
Que concluir da leitura destes trabalhos? Antes de mais, a consciência comum do direito da Nação Brasileira a uma fala e uma escrita que, cada vez mais afastadas do padrão europeu do português, têm todo o direito a constituírem-se como ramos autónomos da mesma língua. Em segundo lugar, posições diferentes quanto ao futuro do português do Brasil: para Barbosa Lima Sobrinho e para Celso Cunha, tendência para se aceitarem como naturais os fenómenos de independência linguística da fala brasileira, mas sem se pôr em causa a chamada “unidade e diversidade” da língua comum; para Herbert Parentes e Altamirando Requião, a inevitável projecção do idioma falado no Brasil como uma nova língua, derivada em larga medida do português. Falando na Universidade de Coimbra, perante a plateia onde havia reputados filólogos e linguistas de Portugal e do Brasil, afirmava Requião: «Em que pese o muito que amamos Portugal, pelo muito que lhe devemos por sua obra admirável de colonização e de cristianização, de que promanou, floresceu e se engrandeceu a maior Nação da América Latina, o facto é que somos uma Nação soberana, e todo dialecto de Nação independente é língua.» (Actas do 5.° Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, vol. 3.°, p. 405.)
Entretanto, é curioso notar que as particularidades ortográficas não mereceram atenção especial dos quatro especialistas, porque – convém recordá-lo – há 50 anos era pacífica a ideia de que a ortografia devia seguir o seu caminho natural, em consonância com as tradições nacionais de Portugal e do Brasil: os portugueses aceitando o chamado Acordo de 1945 e os brasileiros regressando pacificamente ao seu próprio Vocabulário de 1943, depois de a maioria dos deputados no Congresso ter rasgado a famigerada Convenção assinada com Portugal no tempo de Getúlio Vargas, falecido tragicamente em 1954. Sunt lacrymae rerum…
À distância de meio século do livro de Celso Cunha, cuja memória é indistintamente venerada por filólogos portugueses e brasileiros, é particularmente actual o recado que as suas palavras nos transmitem: «Qualquer acção que vise à unidade idiomática deve processar-se com absoluto respeito às variedades nacionais», já que – acrescenta – «o português de Portugal e do Brasil têm, assim, necessariamente, que ser considerados em nível de norma» (p. 81). Ora, a verdade é que a unidade idiomática do português europeu (ou norma, na terminologia de Coseriu) saiu muito maltratada da resolução da Assembleia da República que, em 1990, assentou as bases do chamado Acordo Ortográfico, alegadamente em vigor em cinco países lusófonos. Salvo melhor opinião, cometeram-se, sem utilidade para ninguém, os mesmos erros que estiveram na base da recusa, pelo Congresso Federal Brasileiro, do Acordo de 1945. Curiosamente, o período mais pacífico da guerrilha ortográfica foi o que ocorreu entre 1955 (ano da “insubordinação” do Congresso Brasileiro) e o de 2011, quando os Governos de Portugal e do Brasil decretaram a “unificação”. Meditem nisto os interessados.
É tempo de se abandonarem utopias estéreis e de se respeitar o direito à ortografia nacional, em Portugal, no Brasil ou em qualquer outro país lusófono onde a marca da autonomia cultural esteja claramente presente no uso da língua. Deixemos respirar a diferença.
Artur Anselmo
[Transcrição integral (incluindo “links”) de reprodução publicada no “Ciberdúvidas“. O artigo original, da autoria de Artur Anselmo Soares, foi publicado no “Jornal de Letras” n.º 1178, de 25.11.15. Imagem retirada do “site” da ACL.]