Uma história (muito) mal contada [XXV]

A verdade contra a força

«Permita-se-me destacar uma fotografia que sem possuir a qualidade técnica necessária passou a ser a minha preferida: trata-se dessa em que (no lintel de uma porta) aparece a escultura da coroa franqueada a um lado pela figura ameaçante de um homem de espada na mão e, do outro lado, uma mulher desarmada e de atitude franca e relaxada. O Deputado João Oliveira disse que é a representação da força contra a verdade e eu fiquei então (e fico agora de novo) a pensar que afinal é disso que a ILC pretende: a verdade (a lógica, o bom senso…) contra a força (dos interesses económicos).

Feliz pela experiência, grata pela amabilidade dos deputados e confiante na vitória da verdade seria o resumo do meu estado de espírito na hora de avaliar a reunião, a visita inesquecível.»
Rocío Ramos, 14 de Janeiro de 2013.

Foi nesta nossa segunda “visita” ao palácio de S. Bento, como vimos, que a 7 de Dezembro de 2012 surgiu a ideia da criação de um grupo de trabalho parlamentar sobre o “acordo ortográfico”.

Uns meses antes já tínhamos sido recebidos no Parlamento, mas em circunstâncias completamente diferentes. Todos fizemos o possível, naquele 12 de Julho, mas muito pouco ou absolutamente nada se pode fazer diante do impossível… que é entrar num jogo em que todas as cartas estão marcadas e todos os trunfos estão nas mãos dos adversários: se aquela Comissão parlamentar, como aliás qualquer outra, é constituída por “quotas” segundo a distribuição de lugares no hemiciclo, e se deparamos com deputados acordistas em maioria, bem, então torna-se “um bocadinho” difícil conseguirmos fazer passar a mensagem, falar para quem não quer ouvir, explicar a quem não quer entender, fazer ver a quem está com os olhos vendados.

Porém, se estarmos numa simples audiência na CECC* terá sido talvez coisa pouca, então cousa totalmente diferente seria participarmos num Grupo de Trabalho sobre o AO90. Em 11.01.13, o deputado Miguel Tiago anunciava na sua página do Facebook a formação do GTAO.

A 23 de Janeiro, é publicado o respectivo anúncio formal. E apenas uma semana depois, isto é, no dia 31 desse mês, a ILC-AO foi a primeira entidade a ser recebida no Parlamento em audiência.

Sabíamos antecipadamente, pois claro, qual era o “elenco” de deputados no grupo: Carlos Enes (PSD*), Rosa Arezes (PSD), Gabriela Canavilhas (PS*), Michael Seufert(1) (CDS-PP*), Luís Fazenda (BE*) e Miguel Tiago (PCP*).

Três deputados militantemente acordistas (Enes, Canavilhas, Fazenda), uma deputada (Arezes) sem posição clara e apenas dois (Tiago e Seufert) declaradamente contra o AO90. As perspectivas não eram à partida boas, portanto, muito longe disso.

Aliás, a própria designação do grupo também não augurava nada de bom: Grupo de Trabalho para o Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico.

“Acompanhamento da Aplicação”? Mas qual ou que “aplicação”? E “acompanhamento” de quê ou para quê?

Se o objecto, o objectivo, a finalidade era apenas e só “acompanhar a aplicação” do AO, então isso excluiria tácita e liminarmente qualquer outra hipótese, via de acção ou saída? Aquela designação terá sido negociada? Terá sido uma cedência para que o grupo fosse viabilizado? Só assim compreendo que a constituição do GT tenha sido aprovada por unanimidade pela CECC*.

Bom, fosse como fosse, sempre com esperanças mas nunca fiando, tínhamos de estar preparados para não nos deixarmos “comer por lorpas”: não iríamos para ali fazer o número de anti-acordistas amestrados, como tantas vezes já vimos antes e continuamos ainda a ver; alguns tendem a deixar-se enredar em “eventos” de pura propaganda  acordista.

Pois nós nunca nos deixámos envolver em coisa alguma para além da luta contra o AO90. A ILC-AO participaria no GT, evidentemente, até porque tinha estado na origem da sua formação, e não iríamos fechar portas ou acirrar hostilidades, isso era certo: por todas as razões e mais algumas, a começar pela forma transparente, honesta e esperançosa como a ideia tinha sido lançada. Ou seja, a nossa presença não serviria para sancionar um embuste, se fosse esse o caso, atendendo à maioria acordista e ao “título” do grupo, mas ainda assim a nossa postura seria sempre civilizada.

Para que à cabeça ficasse claro que não estávamos ali para fazer figura de corpo presente, isto é, de idiotas úteis, preparámos antecipadamente um texto para esclarecer ao que íamos. Entregámos e lemos uma “Declaração de Princípios” que terminava assim:
«O que vimos agora aqui dizer, por fim, é que existem ferramentas e mecanismos para anular o erro colossal que foi a aprovação pelo Parlamento português da RAR 35/2008. Estamos no exacto local onde esse erro foi cometido, logo, é também este o único lugar para voltar atrás: basta para isso, simplesmente, que seja respeitada a vontade dos cidadãos de seguir em frente.
Porque é neste aparente paradoxo, voltar atrás num erro para seguir em frente com o que é correcto, que reside em essência tudo aquilo que pretendemos. É esta, estamos certos, a vontade da maioria dos portugueses.»
[Ponto 7 da “Declaração de Princípios” lida no GTAO]

Em 13.02.13 foi publicado, na respectiva página do “site” do Parlamento, o relatório da nossa audiência, incluindo gravação integral das intervenções.

Se o título do GT já incomodava e se o respectivo quórum não augurava nada de bom, então havia algo pior ainda: o relatório da nossa audiência foi publicado no “site” do Parlamento com diversos truques e uma nada  pequena armadilha semântica. Chamando os parlamentares bois pelos nomes, há nesse relatório um parágrafo absolutamente capcioso:
«Entendem que a entrada em vigor do Acordo não é um facto consumado, existindo uma oposição generalizada nos organismos do Estado. Afirmaram que é possível reverter este processo e voltar à forma antiga, existindo mecanismos para anular o erro da aprovação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008.»

Nenhum de nós, que me recorde, proferiu a expressão “voltar à forma antiga”. Nunca, jamais, em tempo algum, que eu saiba, qualquer elemento da ILC-AO se referiu à Língua Portuguesa correcta utilizando uma formulação sequer remotamente parecida com “forma antiga” (ou coisa que o valha).

Mau demais para ser verdade. A utilização daquela alienígena formulação no relatório da nossa audiência tentava transmitir a ideia abstrusa de que as pretensões da ILC-AO não passavam de um retrocesso. Tão tendenciosa quanto evidente manobra de intoxicação, está bem de ver.

Reiteremos: as palavras não são indiferentes, a escolha de termos não é nunca meramente casual.

Por conseguinte, ficámos cientes de que a coisa poderia vir — como de facto sucedeu — a acabar pessimamente, mas, ainda assim, optimistas inveterados que somos, conservámos um módico de esperança: na vida há milagres, podíamos afinal estar enganados!

A seguir à nossa, muitas outras audiências e audições se seguiram. Presumindo que não valerá  a pena estar mais uma vez tergiversando a respeito da diferença entre “audição” e “audiência”, passemos adiante. Foram, no total 12 audições (solicitadas pelo GT) e 6 audiências (solicitadas ao GT), envolvendo organizações, entidades, algumas personalidades, individualmente, e até mesmo, pasme-se, um ou outro grupo excursionista.

Antes de falarmos dos (desastrosos) resultados finais daquele grupo de trabalho para lamentar, introduzamos aqui uma outra vertente do assunto.

É que, de facto, houve neste processo uma interferência tão estranha quanto (desastradamente) decisiva: em 26 de Abril de 2013 foi entregue na Assembleia da República (mais) uma petição contra o AO90.

As datas, e em especial as coincidências temporais, poderão ajudar a explicar alguma coisa?

Recapitulemos:

Pergunto: quando (mais) aquela petição foi lançada, já teria sido anunciada a formação do Grupo de Trabalho?

Observo: quando a mesma petição foi entregue (Abril 2013), o GTAO ainda não tinha encerrado os seus trabalhos; aliás, estava precisamente a meio desses trabalhos.

Ora, então, porque terá sido a dita petição entregue àquele mesmo Grupo naquela precisa ocasião?

Porque se centra o Relatório de Actividades do GT mais na petição do que nas audições e audiências que realizou, e muito mais no texto da tal petição do que nas centenas de documentos entregues ao próprio GT?

Desse relatório consta, após citação quase ipsis verbis dos pressupostos arrolados pelos peticionários, esta “sentença” absolutamente extraordinária:
«Em linhas gerais, estes argumentos foram também aduzidos pelos opositores numa petição entregue na Assembleia da República. O documento foi objecto de análise na 1ª Comissão, que já emitiu parecer sobre o assunto.»

Perdão? “Em linhas gerais”? Como é isso? Vários (se não a maior parte ou se não mesmo a totalidade) dos pressupostos mencionados e das “críticas ao acordo ortográfico” enumeradas no ponto 4.1 do  Relatório constam do texto da petição; parecem aliás ser um simples copy/paste (copia e cola) desta para aquele, como se nada mais existisse para além daquilo, naqueles termos e com aquelas prioridades. O que não é de todo o caso, como sabemos.

Sobra ainda uma outra perplexidade (digamos assim): como se compreende que essa petição tenha integrado o relatório do GTAO* se os representantes dos peticionários não tiveram ali qualquer audiência (ou audição)? Mas isto faz alguma espécie de sentido, porventura, visto que a mesma petição foi posteriormente discutida  em plenário (no dia 28.02.14) e de seguida arquivada sem produzir o mais ínfimo resultado prático?

Sem o mais ínfimo resultado prático, realmente, de tal forma que o promotor da “desvinculação de Portugal ao acordo ortográfico” [sic] nem se deu ao luxo de comparecer na “discussão” da mesma, porque, disse, estava «desiludido».

Tudo muito estranho, parece-me. A história está, de facto, em especial quanto a este particular, muitíssimo mal contada.

Passemos ao desfecho: o encerramento dos trabalhos do GTAO deu-se com a aprovação formal do respectivo relatório final, em 30 de Julho de 2013.

Resultados? Inexistentes, é claro. Na prática, nada.

«O Grupo de Trabalho teve como objectivo último fazer o ponto de situação na aplicação do Acordo Ortográfico em Portugal.»

Zero. Nem merece a pena perder tempo teorizando sobre nulidades ou tecer considerações a propósito de algo que se foi esvaziando, como uma bola colorida entre as mãos de uma criança.

Não é possível que tantos se tenham enganado durante tanto tempo e que tão poucos tenham andado a enganar todos durante o tempo todo.

Pode a verdade, essa mulher desarmada e de atitude franca e relaxada, ser afinal derrotada pela força dos interesses económicos?

Pois parece que sim, pode. Mas então, se é assim, se foi assim, resta a questão primordial, aquela que nos zumbe desde sempre em volta da cabeça, qual varejeira teimosa, persistente, extremamente irritante: porquê? Porquê? Porquê?

PORQUÊ?


Fotos de Rocío Ramos (RR)

(1) – Inês Teotónio Pereira substituiu nesta audiência o deputado efectivo Michael Seufert, que faltou.

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