«By destroying the words themselves, the state would be able to destroy the concepts they represented.»
George Orwell, “1984”
Da feitura de alguma Ciência como forma de refinada lavagem ao cérebro
Chegou ao meu conhecimento um artigo escrito por José Teixeira, investigador da Universidade do Minho sobre as diferenças entre a língua escrita e a língua real. Nada me move pessoalmente contra o autor, que aliás não conheço. Apenas referirei aquilo que considero ser mais perturbante na leitura deste artigo, pois penso que são textos como este que vão sustentando a alegada “necessidade” de um “acordo ortográfico”. Não precisa de ter nenhuma referência à ortografia para se perceber onde querem chegar. Basta insistir na ideia de que a oralidade é tão ou mais importante do que a escrita, que quem insiste na escrita como norma a cumprir é atrasado e não sabe evoluir com os tempos, uma vez que nem os linguistas a seguem.
O autor faz, de uma forma gradativa, um resumo das etapas por que passou a história da Linguística, para chegar à conclusão que a valorização da oralidade só se torna numa realidade a partir das duas últimas décadas do século XX até à actualidade. Assim: “E é nesta fase que aparece valorizada a Linguística da ‘parole’, da ‘performance’ a Linguística do uso e da oralidade, por oposição à anterior, à Linguística do sistema. Agora os usos “anormais” e os erros são tidos como fenómenos que evidenciam o funcionamento verdadeiro das línguas e da sua base biológica, cognitiva, cultural e pragmático-contextual.” [pág. 490]
E se os linguistas o dizem, pelo menos alguns, “quem somos nós” para dizer o contrário. É o puro argumento da autoridade científica. Já não é preciso mencionar nenhum tipo de acordo. É muito mais subtil e difuso. Pois se a escrita equivale à oralidade, se o que as pessoas usam na comunicação oral é que deve ser a norma, então as regras da escrita de pouco valem e podem ser simplificadas sem problemas de maior.
O autor, a uma certa altura do artigo, nas páginas 490 e 491 (numa secção que sintomaticamente intitula como “Linguística de Estufa”), dá um exemplo interessante. Escreve ele que se tem estudado a linguística de uma forma artificial, quase como se um botânico estudasse as flores recorrendo exclusivamente a flores de plástico e não estudasse as flores naturais, fazendo corresponder “as flores de plástico” às palavras escritas e “as flores naturais” às expressões da oralidade. Não é a palavra escrita que é a “flor de plástico”! É a exacerbada importância dada por alguns (em nome de todos) à oralidade que nos impinge a “flor de plástico”, essa sim, a flor de plástico que é o acordo ortográfico e que apenas serve para transformar a “bela flor do Lácio” (já que falamos de flores) numa hirta flor, plastificada e sem vida.
Aliás, na página 498 o autor defende o seguinte: “Os nossos mecanismos cognitivos do processamento da linguagem funcionam um pouco como os da visão. A fóvea da retina (única parte que perceciona [sic] com nitidez o que varre) não tem tempo de secanear [sic] a totalidade do espaço e por isso o cérebro completa a imagem mesmo sem os dados sensoriais completos. Assim, também cada ouvinte completa com aquilo que acha que compõe o quadro global, tal como a vista (fóvea) faz para a visão, compõe os dados que faltam ou que não tem tempo de processar completamente.” E, só para acabar, na conclusão diz que só valorizando a oralidade é possível transformar a língua portuguesa numa das línguas mais adequadas para ser lida por programas informáticos, ou, melhor dizendo, “secaneada” (ou deverei dizer sacaneada?) por máquinas em formato digital. Assim, conclui o artigo escrevendo: “Poderão parecer lapalisseanas, mas há evidências que a Linguística tradicional ainda não destacou suficientemente, nem delas tirou as devidas consequências para a perceção [sic] e descrição dos reais processos de funcionamento das línguas. Escrita e oral não são realizações iguais da língua. […] As recolhas para a constituição de corpora da oralidade em Português permitirão construir bases de dados fundamentais para se perceber o funcionamento da língua real, de consequências variadas, desde uma melhor descrição linguística até fornecer dados e usos reais que permitam a construção de materiais didáticos [sic] para o seu ensino como L2 [língua estrangeira ou língua segunda]. Poderão, igualmente, possibilitar que o Português seja uma das línguas tecnologicamente aptas para ser incorporada nas futuras utilizações por máquina das línguas naturais e permitir que ocupe a sua posição no mercado global das indústrias das línguas.” [pp. 501 e 502]
Trata-se, segundo o meu entender e depois de referir tudo o que acima foi exposto, de um artigo científico em que podemos ver a feitura da Ciência como uma forma elaborada de lavagem ao cérebro, pois é de lavagem ao cérebro que se trata.
E das formas de a perceber e combater é o que pretende tratar este post, no que ao AO90 diz respeito.
Referências completas do artigo em causa: Teixeira, José (2014) “Língua escrita e língua real: o que um corpus oral permite descobrir”, in Rzepka, Anna e Czopek, Natalia (Eds.), Studia Iberystyczne 13, 2014, Ksiegarnia Akademika, Krakóv, pp.487-506.
DOI: 10.12797/SI.13.2014.3.38
http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/38865/1/13Cracov%20TEXTOcomoPUBLICADO.pdf
[consultado nos dias 11 e 12 de Dezembro de 2015]
[Imagem: Antígona]