O que se segue é transcrição integral de um texto da autoria do Professor Carlos Fernandes publicado pelo semanário “O Diabo“, edição de 22.12.15, páginas 12/13, secção “Análise”. A transcrição foi feita com recurso a digitalização automática (OCR, reconhecimento óptico de caracteres) e correcção manual, pelo que, salvo algum lapso não detectado, corresponde exactamente ao original, havendo neste, parece-me, de facto algumas “gralhas”.
Além de alguns “links”, inseri também na transcrição uma sequência numerada de observações pessoais em forma de notas de rodapé.
O Acordo Ortográfico não está em vigor
Embaixador Carlos Fernandes
Um dos fundadores da Universidade Internacional de Lisboa
e ex-Professor Catedrático da mesma«Ninguém, neste Portugal morno e esquisito em que vivemos, se rebelou contra tão graves violações constitucionais, como obviamente se impunha»[1]
1 – A razão de ser deste artigo é melhor compreender a complexa problemática relativa à entrada em vigor ou não, em Portugal ou fora dele, tanto do Acordo Ortográfico de 1990 (AO/90) original e do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, como do AO/90 modificado substancialmente pelo acordo do 2.° Protocolo Modificativo, de 2004, e também à vigência ou não deste mesmo Protocolo.
2 – Por outro lado, impõe-se fazer o esclarecimento seguinte: é hoje recorrente referir que um acordo internacional ratificável foi ou não ratificado, para se querer dizer que está ou não em condições de entrar em vigor, ou mesmo que já está em vigor para o país respectivo.
3 – Eu mesmo, por comodidade, para não estar sempre a explicar-me, cometo frequentemente esse erro nos dois estudos agora publicados, relativamente ao AO/90 e ao 2° Protocolo Modificativo, e até neste texto.
4 – Porém, tal expressão é inteiramente incorrecta, por insuficiente para pôr em vigor um acordo internacional, e, portanto, pode induzir em erro os não iniciados. Entendo, por isso, dever fazer esta advertência prévia.
5 – De facto, as ratificações (ou equivalente) são apenas actos essenciais do processo de aprovação para a entrada em vigor de qualquer acordo internacional ratificável (e nem todos o são), mas não chegam para o pôr em vigor, até porque o acto de ratificação, em Portugal (decreto presidencial), para ter validade, ou seja, eficácia jurídica, depende ‘sine qua non‘, da referenda do Primeiro-Ministro, que não é obrigatório dá-la, à força e sempre, mas sim quando ele entender que o acto referendando obedece à política geral do país. Muita gente, incluindo alguns constitucionalistas enviesados politicamente, entendem não valer a pena perder tempo com isto, porque julgam ser um não problema, embora se enganem rotundamente – a sua recusa ou não, dependera de quem for governo e das circunstâncias do momento.
6 – Realmente, os que assim procedem esquecem que, nos termos do disposto no artigo 182° da Constituição, é, exclusivamente, o Governo que tem o poder e legitimidade constitucional para conduzir a política geral do país (não é a AR nem o Presidente da República), e, por conseguinte, o Governo tem toda a legitimidade, tal como os outros dois órgãos de soberania acabados de referir, para valorar as leis e os acordos internacionais (sendo a negociação e conclusão destes da exclusiva competência do Governo – v. artigo 197 n° 1, alínea b) da Constituição).
7 – Portanto, a referenda não é uma mera formalidade, na economia do nosso texto constitucional, nunca devendo considerá-la como acto insignificante, e, por conseguinte, dado como adquirido a priori, como muitos pensam. Porque tem sido raramente praticada (ou nunca, até agora), não deve esquecer-se, consequentemente, que o pode ser, v.g., em caso de actos fracturantes, como sejam: actos antipatrióticos, inconstitucionais, ou imorais (v. artigos 140.°, n.os 1 e 2, e os artigos 134.°, alínea b), e 135.° alínea b), da Constituição).
8 – Creio ser de lembrar que nós não temos um regime parlamentar, nem inteiramente presidencialista. O Governo tem mais poder de que alguns pensam. •
9 – Depois, mesmo que já haja referenda, pode haver ainda a negociação e conclusão de reservas, que, por isso, estas são da exclusiva competência do Governo, e, finalmente, é necessária a publicação do acto, sem a qual ele é ineficaz (v. artigo 119.°, n° 1, alíneas b), d) e e), e seu n.° 2 da Constituição). E não há publicação sem referenda, quando a ela houver lugar.
10 – Em resumo, o processo de entrada em vigor de um acordo internacional (ou de qualquer lei) só termina com a respectiva publicação, e, por isso, lhes é dada, como data, a da publicação, e não a da assinatura desses actos, exactamente porque, sem a respectiva publicação, juridicamente, é como se não existissem.
11 – Estes dois estudos, agora publicados[2], não foram feitos, expressamente, para publicação, já que não se trata de estudos completamente autónomos, tão completos quanto possível, sobre toda a problemática técnica e jurídica do AO/90 e actos subsequentes, que, aliás, se impõe, e falta fazer, na confusão em que, actualmente, vive a nossa preciosa língua, escrita e falada.
12 – Porém, vários amigos insistiram em que os publicasse[2], com o argumento de que eram muito oportunos, dada a natureza e importância da questão em causa, e a referida falta de estudo, entre nós, do tratamento adequado de toda a respectiva problemática jurídica, e a minha teoria original sobre a população/língua, que toma inconstitucional a actuação do Governo quando a mutilar.
13 – Tiveram diferente razão de ser, e, por isso, têm diferenças, quase só de exposição, coincidindo na essência, e, por conseguinte, também nas conclusões, como o leitor verificará. Cremos não ser insensato publicá-los, tal qual, em separado, e não refundidos num só texto.
14 – Não têm cariz político, se bem que tenha sido por política ortográfica em favor do Brasil, a meu ver completamente errada, insensata, e anti-patriótica, que Cavaco Silva mandou negociar o AO/90 com a infeliz orientação que lhe deram – mutilar a língua portuguesa, abrasileirando-a, em vez do que seria lógico, aportuguesar a deriva brasileira[3].
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