Uma história (muito) mal contada [XXVI]

As notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas.

As notícias sobre a nossa morte são manifestamente exageradas

Já em 2008 o deputado Rui Tavares assegurava que «daqui a cinco anos ninguém se vai lembrar das razões de tanta resistência.»

Os acordistas são verdadeiros especialistas na arte de dar palpites em geral, como sabemos, mas não são lá grande espingarda quando se trata desta adivinhação em particular. É que não acertam uma, está visto.

Acordo Ortográfico: Aplicado em os países da CPLP dentro de dois anos

O linguista português Malaca Casteleiro acredita que no prazo máximo de dois anos, todos os países de língua oficial portuguesa já terão aplicado o acordo ortográfico. “Estou convicto que no prazo máximo de dois anos o Acordo estará implementado em todos os países”, garantiu à Lusa o professor universitário e membro da Academia das Ciências de Lisboa (ACL).

Jornal “Mundo Português”, 6 de Abril de 2010

Se 2012 tinha sido o ano da viragem, 2013 foi o da esperança, primeiro, da expectativa, depois, e da desilusão, por fim. Ou seja, foi o ano do GTAO*, principalmente, mas foi também o ano em que apareceu, “out of the blue“, uma coisa com a designação de “petição pela desvinculação de Portugal ao [sic] acordo ortográfico” e foi o ano que terminou com os desastrosos resultados conhecidos. Desastre este para o qual a dita petição terá contribuído decisivamente, dado o tempo e o modo, conforme as razões anteriormente aduzidas e aquelas outras que ainda faltará quiçá esmiuçar.

O grupo de trabalho parlamentar funcionou conforme previsto, pelo menos até metade do seu percurso agendado. Após sermos ouvidos pelos deputados do grupo, naquela que foi a primeira de uma longa série, seguiram-se várias outras audiências (por regra, solicitadas por anti-acordistas) e audições (de acordistas convidados pelo GT). Portanto, do acervo que fomos constituindo no “site” da ILC-AO, com gravações e respectivas transcrições, interessarão muito mais as (6) audiências do que as (12) audições; destas últimas, no entanto, há que destacar, pelo contraste que representam estes protagonistas, em especial dois depoimentos: o de Vasco Teixeira, Director da Porto Editora, e o do Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Artur Anselmo.

Das audiências, que foram, por algébrico acaso, metade das audições, publicámos diversas transcrições do que naquele grupo de trabalho foi dito.

Curiosamente, ou não, aliás à semelhança do que já tinha sucedido com a nossa própria audiência, detectámos e assinalámos vários casos de nítidas discrepâncias — e não poucas contradições flagrantes — entre as declarações dos intervenientes (nomeadamente as dos deputados Miguel Tiago e Michael Seufert) e aquilo que depois apareceu vertido nos respectivos relatórios.

Transcrevemos ainda, além de tudo isto, diversos dos documentos enviados por inúmeras pessoas e organizações com a finalidade de constituir acervo de análise no âmbito dos trabalhos do GTAO*. Se alguém no Parlamento sequer leu algum ou alguns desses documentos, bem, isso será difícil apurar ao certo; em substância, o relatório final refere sistematicamente, para não dizer obsessivamente ou até mesmo exclusivamente, a já referida petição que ali foi entregue, vá-se lá saber por que bulas, em Abril de 2013.

O que resultou, é claro, de um fenómeno singelo (e esquisito): a partir do momento em que  aquela petição aterrou naquele grupo de trabalho, a dita tomou conta do grupo e do seu trabalho, por assim dizer, o assunto ficou a marinar e a expectativa substituiu a iniciativa.

Nós mesmos, que tínhamos previsto e antecipado o óbvio, isto é, que a petição significaria na prática o esvaziamento do GTAO, vimo-nos perante um dilema: apoiar aquilo ou não?

Na verdade, optámos pela via intermédia: nem uma coisa nem outra. E chegámos mesmo a reduzir ao mínimo as actividades da ILC-AO, durante mais de cinco meses (entre Julho e Dezembro de 2013), na expectativa (cá está ela) de que a tal petição pudesse afinal, por mero acaso ou extraordinário milagre, vir a dar algum resultado. Sempre julgámos que a ILC seria a solução mais viável, mas não colocámos jamais, obviamente, qualquer obstáculo a que outra solução pudesse surgir entretanto.

Infelizmente, se bem que previsivelmente, o “apagamento” que nos auto-impusemos, naquele longuíssimo compasso de espera, acabou por se revelar de todo inútil: nem a petição produziu resultados nem o GTAO, entretanto absorvido pela dita, teve o menor efeito prático ou a mais ínfima consequência.

Naquela ocasião, quanto a mais aquela petição, não colocámos entrave ou tomámos qualquer atitude negativa; mas também não iríamos apoiar activamente uma iniciativa que estava ab initio condenada ao fracasso e que, inevitavelmente, ainda por cima, colidia com a nossa própria Iniciativa, já que, pela natureza e finalidades completamente diferentes de ambas, uma coisa exclui a outra. Não recomendámos aos subscritores da ILC-AO que não subscrevessem (mais) aquela petição, pois que diabo, isto é um país livre, pelo menos é o que diz a CRP*, mas também não apelámos a que o fizessem; e isto porque, evidentemente, tal apelo equivaleria a um reconhecimento tácito de que a ILC-AO não era afinal o que interessava, que havia melhor  solução e que, portanto, não apenas nós estávamos enganados como, por absurdo que isto possa parecer, tínhamos andado a iludir toda a gente desde o início.

Se apoiássemos (mais) aquela petição, então por que razão não tínhamos apoiado antes qualquer das várias “iniciativas” promovidas pelas mesmas pessoas? Qual dessas outras “iniciativas” produziu fosse que efeito fosse? Alguma delas não significava, subliminar e implicitamente, que a ILC-AO era inútil? Então iríamos nós, os promotores dessa putativa “inutilidade”, promover em simultâneo algo que implicava, por exclusão de partes, que mais valia termos estado quietinhos?

Portanto, ainda assim, sem apoiarmos mas também sem fazermos oposição, ficou ao critério de cada qual subscrever ou não (mais) aquela petição.

Escusado será dizer, presumo, que, logicamente, eu não a subscrevi. Não assino nada de cruz ou só porque sim. Não digo, como disse VGM* em tempos, que “assino tudo aquilo que seja contra o acordo ortográfico!”

Salvas as devidas distâncias, até porque cada um sabe de si e só Deus de todos, pois eu cá não assino, muito menos promovo e sequer apoio manobras pífias, antecipadamente condenadas ao fracasso ou, pior ainda, fatalmente destinadas a sofrer uma derrota humilhante. Mas isto sou só eu, evidentemente, a minha insignificante pessoa. Não “assinei” aquela como não assino petição alguma desde 2008, precisamente a de VGM et al. E por maioria de razões não “assinaria” esta outra, já que, na prática, serviu apenas — a total ausência de resultados comprova-o —  para a paralisação da ILC-AO, para monopolizar as atenções e os trabalhos (veja-se o relatório final do GTAO) e, por conseguinte, para inviabilizar qualquer réstia de esperança sobre o que do grupo de trabalho pudesse vir ainda a resultar.

Além disso, vejamos, à conta de quê iríamos nós apoiar (mais) esta petição? Por uma questão, como alguns clamavam, de uma pretensa “união de esforços”? Mas qual “união” e quais “esforços”? Iríamos nós unir os nossos esforços para derrubar o AO90 a quem se esforçou,  empenhada e furiosamente, em liquidar a nossa Iniciativa? Ou então vale tudo, nada importa nem interessa para coisa alguma, mentiras, atoardas, provocações, calúnias e difamações em geral, não, aquilo foi de boa-fé, não há problema algum, isto ele é só gente fina?

Algumas pessoas teimavam nessa curiosa teoria que, é claro, não vingou: falavam em “união de esforços” como se isso fosse algum mandamento divino, diziam que isto “é tudo a mesma luta”, que “os cães ladram e a caravana passa” e assim por diante. Em suma, que deveríamos nós (se bem entendi esta parte, devo confessar, ou não, em boa verdade não entendi patavina) juntar os nossos esforços para levar a ILC ao Parlamento aos esforços de diversas pessoas para impedir a ILC de chegar ao Parlamento.

Fantástico, Melga!

Não é uma maravilha, esta lógica, hem, Mike*? Sim, Melga, é mesmo fantástica, uma linda teoria apresentada em “kit” numa belíssima embalagem sem portes de envio e quase inteiramente grátis, Melga*.

Dificílimo imaginar sequer como se poderia pôr em prática tão linda teoria, mas pronto, era isto, está bem, abelha, digo, melga, não há nada mais natural do que, por exemplo, a ILC-AO desaparecer e passar a ser (mais) uma petição (ou várias), ah, certo, oh, sim, faz todo o sentido, é mesmo fantástico.

Esta rapsódia da “união de esforços” já vinha de trás, mas foi de facto durante o ano de 2013 que o coro (de assobios para o lado) atingiu o auge, o clímax, salvo seja, vá-se lá saber porquê, ao certo. O ano até tinha começado bem, se calhar foi por isso que acabou assim tão mal. Mas não levemos agora a coisa a sério, isso já lá vai, acabou-se.

Em 2013 também houve, além da formação e do decurso dos trabalhos do GTAO, pelo menos dois outros acontecimentos muito importantes para a nossa Causa: logo a abrir, a 9 de Janeiro, a SPA anuncia oficialmente que recusa o AO90; e a 26 de Maio o juiz Rui Teixeira proíbe que seja utilizado o aleijão ortográfico no Tribunal de Torres Vedras.

As coisas continuavam a mexer-se debaixo do Sol, por conseguinte, e, apesar de tudo, os sucessivos anúncios (e prenúncios) da nossa morte tinham sido um manifesto exagero: em Dezembro de 2013, a ILC-AO estava ainda (e ainda assim) para durar. A tal petição subiria a discussão no parlamentar plenário a 18 desse derradeiro mês do ano do azar mas, até nisso houve mais um bocadinho de galo, o espectacular acontecimento foi adiado in extremis. Teríamos, portanto, de levar o galo à respectiva missa, na noite de passagem para o 1.º de Janeiro de 2014, pronto, depois então se veria.

E isso veremos, assim com’assim.



GTAO – Grupo de Trabalho sobre o Acordo Ortográfico (Assembleia da República)
SPA – Sociedade Portuguesa de Autores
VGM – Vasco Graca Moura
CRP – Constituição da Republica Portuguesa


A expressão “fantástico, Melga!” foi popularizada pelo actor José Pedro Gomes no programa da RTP “Herman Enciclopédia”, de Herman José. Este “sketch” em particular adequa-se ao tema, já que nele se promove um produto que previne facadas nas costas.

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2 Comments

  1. Isabel Coutinho Monteiro

    Espectacular retrospectiva! Foi mesmo assim que as coisas aconteceram. Lembro-me muito bem. Infelizmente, de início também embarquei na “união de esforços”, mas depressa percebi que que visavam a desunião.

  2. Bons tempos, em que «detector» («de ministros-sombra») aparecia bem escrito na RTP… 😉

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