Dia: 3 de Janeiro, 2016

Estrela de seis pontas [por Olga Rodrigues]

estrela6pontas

Da obsolescência

Algumas pessoas que não concordam com o Acordo Ortográfico pensam ingenuamente que basta afirmar que é algo desnecessário e que muita gente que contra ele se insurge o faz por razões que não serão as mais correctas, acabando por fornecer argumentos que favorecem…os defensores do AO. Vejamos um exemplo.

No blog “Certas Palavras”, em “o AO e a Guerra na Ucrânia”, o autor tenta aduzir um argumento “racional” para se colocar contra o AO e que é o de “não servir absolutamente para nada”. Pensa que a grande maioria dos oponentes ao “acordo” o fazem apenas por motivos “tribais” ou “patrióticos”, ou seja, ”irracionais” e ditados por pura emoção. O post em si, apesar das boas intenções, apenas fornece argumentos aos defensores do dito “acordo”, que sempre refutaram todas as críticas que têm sido feitas precisamente com aqueles mesmos argumentos: a rejeição do AO é uma reacção puramente emocional, ditada por um patriotismo ultrapassado e por uma forte resistência à mudança. Em suma, os anti-acordistas que ainda restam (a imensa maioria da população) nada mais serão do que uns velhos do Restelo, uns fundamentalistas do pior, atrasados e apegados a tradições sem sentido.

Ora, os fundamentalistas são precisamente os acordistas, que desbaratam um património comum (sim, comum a todos, portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos, guineenses, cabo-verdianos e tantos outros espalhados por este mundo fora) apenas para criar e impor uma verdade à medida da sua bolsa e de outros interesses ainda mais obscuros e inconfessáveis. Fingindo e arrogando-se ser guardiões do que é de todos, vão desvirtuando o que não é deles, criando uma mitomania que apenas serve de sustento a uns quantos espertos. Os fundamentalistas são os acordistas, seguidores de um neoliberalismo histérico, traduzido no tão em voga “turismo linguístico” que não é nem uma coisa nem outra, mas apenas uma vulgar forma de proxenetismo.

Uma língua desenvolvida pelo uso contínuo das gentes, que é o resultado do latim vulgarizado  em amálgama com a fala dos celtas e dos godos, por exemplo e em traços muito gerais, falares aqueles que por sua vez se misturaram com o dos povos adoradores de Endovélico, que já cá estavam, e a que posteriormente se adicionou a doçura e a vivacidade do Árabe. Um legado que nos foi transmitido “de jure”, algo abscôndito, indizível e intraduzível, como são todos os verdadeiros laços que nos ligam aos que já não estão connosco e àqueles que depois de nós virão. Não é um “activo”, não é um “bem transaccionável”, eufemismos que servem para exprimir a coisificação de algo que nos transcende. Não é a coisificação da língua que queremos, é a sua entificação.

Sim, a língua é um ente, um ser vivo com identidade própria; é um ser e vive e desenvolve-se e  reproduz-se; sendo nós ao mesmo tempo seus criadores e seus mantenedores. Temos o privilégio de falar e escrever uma língua que é só nossa (e neste “nossa” incluo ecumenísticamente todos os seus falantes de todas as latitudes), o que comporta igualmente o dever imanente de a transmitir fielmente aos que depois de nós vierem.

A língua portuguesa falada e sobretudo escrita é a aristocracia para todos, como dizia Sophia de Melo Breyner a propósito do socialismo. É a possibilidade de todos os seus falantes se entenderem através de uma plataforma comum que possibilita a criação de uma verdadeira cumplicidade feita de várias partilhas. Cumplicidade não significa promiscuidade, não significa abastardar um património comum para criar uma aproximação que já existia e, sobretudo, para criar oportunidades de desenvolver negociatas espúrias.

O AO90 é um esquisito “porreirismo”, divide quando diz aproximar: nas palavras que têm uma grafia em Portugal e outra no Brasil, em todas as facultatividades que consagra! Vai fatalmente contaminar a pronúncia da língua portuguesa, afastar as palavras da sua raiz etimológica, vai empobrecer irremediavelmente a forma como exprimimos o que pensamos e sentimos e, a prazo, limitar seriamente a nossa percepção do mundo. Tal é o perigo de tão nefasto “Acordo”!

 

Da invisibilidade

Dizem alguns anti-acordistas que quem defende o AO pretende ostracizá-los colando-lhes na lapela uma espécie de estrela de seis pontas, como outrora se fez com os judeus. Os defensores e propagandistas do “acordo”, apoiados por grandes cartéis de Comunicação Social (cujo único objectivo é maximizar os lucros) e por um sistema educativo público fragilizado, simplesmente ignoram ou remetem para o estatuto de caduca curiosidade todo e qualquer oponente ao AO. Já nem a esmola de os (nos) considerar fundamentalistas lhes (nos) concedem. Condenam-nos à invisibilidade.

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