Dia: 15 de Janeiro, 2016

A revelação da língua portuguesa [por Olga Rodrigues]

7véus 8Os sete véus em que nos querem enredar

A implementação do AO é apenas a faceta mais visível de um amplo processo de afastamento induzido da gramática e da escrita e esta da leitura.

Se juntarmos ao progressivo empobrecimento geral, que será cada vez mais uma dura realidade para grande parte da população, a uma contínua exposição a reality shows de fraquíssima qualidade e a notícias que não o são realmente, tratando-se antes da mais pura propaganda, teremos a receita perfeita para a insuperável alienação e embrutecimento sem retorno da esmagadora maioria.

A revelação de algo, ao contrário do significado que lhe atribui o senso comum de tornar visível o que estava oculto, significa, strictu sensu, precisamente o contrário, ou seja, colocar algo debaixo de um véu ainda mais denso e imperceptível para toda a gente, com excepção de um pequeno grupo de eleitos.

Assistimos assim a uma verdadeira re-velacao da língua portuguesa, ou seja, à colocação de um denso véu sobre as suas mais ancestrais origens. Véu esse que nos é colocado antes de tudo pelas instituições do Estado que nos devia representar a todos e que trai a Nação que o sustenta, insultando os cidadãos que nele vivem ao utilizar o sistema de ensino público para propositadamente difundir uma concepção aberrante e errónea da língua portuguesa, ao mesmo tempo que defende leoninamente os espúrios interesses de uma quadrilha que a pouco e pouco desmantela e destrói o que é de todos.

Tentam colocar-nos um véu os grandes grupos editoriais e de comunicação social ao pactuarem cupidamente com uma comprovada mentira de Estado, apenas para obter ganhos meteóricos, apesar de chorudos.

Um véu também nos colocam todos aqueles que se limitam a encolher os ombros, a pactuar com a indiferença geral, mesmo quando têm diante dos seus olhos evidências irrefutáveis da mentira que é o AO.

Aliás, colocam-nos também um véu todos aqueles que tratam a questão da integridade da língua como uma questão menor, algo sem importância que não merece atenção nem estima. Um objecto mais entre os vários que fazem parte do seu quotidiano e que por isso seguem a tão portuguesa lógica do “deixa andar”.

Colocam-nos ainda um véu todos aqueles que temem irracionalmente o cacete do poder, que,  mesmo não concordando e sentindo repulsa até por este AO, cedem à totalizante mentalidade do “é assim”, conformando-se com o inconformável sem sequer esboçarem uma tentativa para reverter o que consideram ser já um facto consumado, não entendendo que com essa atitude apenas ajudam quem os quer privar de um dos seus direitos mais elementares.

Colocam-nos ainda um véu todas aquelas mentes melífluas que fingem pena por a situação ter chegado até este ponto de quase não retorno mas…”oops, agora já está aprovado e não se pode voltar atrás”. Mesmo quando em cargos de responsabilidade, não mexem uma palha para mudar uma situação com a qual nem mesmo eles convivem bem. Atitude perigosa porque detentores de um cargo de poder estão, com a sua atitude colaborante e veneranda, a conformar todo um povo ao inconformável e a contribuir por omissão para a alienação de um património que tinham o dever de preservar e de transmitir a quem depois deles vier. Um dos últimos exemplos desta atitude pouco saudável veio da segunda figura da Nação, o nosso Primeiro- Ministro Dr. António Costa que em intervenção recente num canal de televisão, e quando questionado especificamente sobre a questão do AO disse taxativamente que não o iria revogar!

Tentam também colocar-nos um véu, e isto é profundamente triste, alguns ditos opositores ao AO que tanto usam a lisonja e a adulação como o mais fulminante veneno; fingindo um denodado apoio à causa da língua portuguesa que devia ser a causa de todos, usam-na ora para promover as suas pequeninas figuras, ora para lançar as suas vis negociatas.

Estão tão cheios de si, tão convencidos da grandiosidade dos seus egos e não dos seus princípios, valores ou crenças, que o único golpe de vista que os seus incomensuráveis egos alcançam é a obsessiva e doentia ânsia de se renderem ao “star system” vigente. Pequeno desígnio para tão grandes umbigos!

Pensam que ser uma estrela é apenas brilhar acima de tudo e de todos, merecendo o aplauso de todos, esquecendo-se de que o brilho, por mais intenso que seja, é sempre fugaz e que o aplauso de hoje é o esquecimento de amanhã!

E entretanto, para satisfazer a sua ânsia de brilhar, arrastam um património que é de todos, a língua portuguesa, para um imenso e irreversível buraco negro. É por isso cada vez mais necessário (como pão para a boca, diria o povo) desmontar estes ruinosos arranjos de uns quantos em nome de todos e ir desvelando um a um os pesados véus com que nos querem sufocar. E tornar bem claro que vemos e rasgaremos sem hesitar estes e quaisquer outros véus.

Apesar de a imagem que enquadra este texto ser muito bela, a verdade é que a imagem da burqa também não ficava ali mal pois estamos a falar de véus intelectuais mas, conseguindo esses vingar, logo a seguir virão os véus em sentido literal e explícito. Aliás, um dos motivos porque os talibans foram tão bem sucedidos foi precisamente porque estavam a lidar com uma população maioritariamente analfabeta. Erradicar talibans, nazis, familiares do santo ofício e outros que tais é condição sine qua non, não só para vivermos em liberdade mas também, e sobretudo no caso que nos ocupa, para fazer vingar aquilo por que lutamos. O AO chegou até aqui precisamente porque essa gente tem tido toda a força quase sem nenhuma oposição.

Olga Rodrigues


[Imagem de Anaíde Resende, Companhia de Dança (Brasil)]

“O acordo é p’ra unificar a língua portuguesa com a espanhola”

Eureka!

Ora cá está, finalmente, uma explicação razoável para o AO90:  destina-se a unificar a língua portuguesa e a língua espanhola, pronto, ficamos com o Portuñol (ou com o Espanholês, a designação exacta da coisa ainda não foi apurada), e siga, assunto arrumado, não se fala mais nisso.

Diz lá então como é, jovem:
«O intuito do acordo era tentar unificar a língua portuguesa com a língua espanhola, né? A princípio, a ideia é que seja uma construção p’ra unificação e melhor unidade entre as línguas portuguesa e espanhola. Como isso vai modificar efectivamente na minha vida, eu acho que é só mais uma das regrinhas que a gente tem que aprender p’ra escrever correctamente.»

Quem assim fala, nesta entrevista de rua realizada por uma TV universitária brasileira, é um jovem estudante (brasileiro, por supuesto), mas há outros entrevistados na peça, salvo seja, cada qual competindo ardorosamente pela maior calinada nesta académica demanda: oi, cara, o que raio é o acordo ortográfico, hem?

Se aquele juvenil exemplar arruma tão brilhantemente a questão chutando para escanteio, já um outro dos jovens entrevistados consegue mesmo articular alguma coisinha de jeito (digamos assim, imbuídos de caridade cristã):
«O acordo ortográfico, na verdade, ele é uma ‘”forçação de barra'” porque as línguas…  primeiro que eu acho que nós não falamos português brasileiro, eu acho que nós falamos a língua brasileira. Nosso idioma, ele tem uma diferença enorme do português de Portugal e é até uma agressão à nossa identidade você querer unificar a escrita de dois idiomas que são completamente diferentes.»

Em suma, julgareis vós certamente que estarei eu aqui fantasiando, inventando, caçoando até. Mas não, de todo, não estou.

Ide, ide ouvir todos. Isto é o “corpus” universitário brasileiro derramando sabedoria p’ra cima da gente.

 

«Se fosse só três sílabas…» [Nuno Pacheco, “Público”]

lusiadas

Se fosse só três sílabas…

Nuno Pacheco

14/01/2016 – 21:34

Desacordai, ó gentes que dormis! É que já passou o tempo dos silêncios vis.

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Estava a ‘caterpillar’ socialista posta em desassossego, a trabalhar a todo o vapor na desmontagem do edifício legislativo do anterior governo, quando José Pacheco Pereira resolveu perguntar a António Costa sem grandes rodeios: se estão a acabar com tanta coisa, por que não acabam com o acordo ortográfico? Isto foi-lhe perguntado na SIC-N, numa edição especial do programa Quadratura do Círculo — onde Costa, ex-comentador residente, esteve agora como convidado e, claro, Primeiro-ministro. “Acho que não faz sentido mexer no acordo”, disse Costa. E arrancou às suas memórias este diamante: “A minha geração já aprendeu na escola que Luís se escreve com S e não se escreve com Z.” Quis com isso dizer: já houve um acordo, este é outro, para quê tanta preocupação? Mas foi infeliz (com Z) no exemplo. Porque Luís, palavra de origem alemã que na sua evolução pelos continentes deu Ludwig, Louis, Luigi ou Luís, já se escrevia por cá com S no tempo de Camões, como se pode confirmar na capa original d’Os Lusíadas. Houve luíses com Z, é certo, mas onde eles proliferaram foi no Brasil. Querem um exemplo? Vão à página oficial do Instituto Lula e lerão: Luiz Inácio Lula da Silva. Assim mesmo, com Z. Conclusão: Camões escrevia como ensinaram a António Costa e Lula, no Brasil, usa o Z que a escola disse a Costa que era errado. Confuso? De modo algum. Confusa é a forma como os políticos, absolutamente ignorantes na matéria, continuam a falar do acordo ortográfico. Mas ficámos a saber uma coisa: Costa não tomaria a iniciativa de fazer este acordo, disse-o na SIC-N, mas também não toma a iniciativa de o desfazer. Compreende-se. É muito mais “importante” do que os exames ou a TAP… Parafraseando O’Neill, se o acordo fosse só três sílabas, e de plástico, para ser mais barato, não havia problema. Mas é, como lhe chamou um crítico literário brasileiro, um aleijão que incomoda. Em Portugal, no Brasil ou onde quer que vegete. Desacordai, pois, ó gentes que dormis! É que já passou o tempo dos silêncios vis.

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[Artigo de opinião, da autoria de Nuno Pacheco, “Público”, 15.01.16. Exactamente conforme o original (sem parágrafos). Acrescentei “links”. Imagem de Fundación Instituto Portugués de Cultura.]