Estrela de seis pontas [por Olga Rodrigues]

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Da obsolescência

Algumas pessoas que não concordam com o Acordo Ortográfico pensam ingenuamente que basta afirmar que é algo desnecessário e que muita gente que contra ele se insurge o faz por razões que não serão as mais correctas, acabando por fornecer argumentos que favorecem…os defensores do AO. Vejamos um exemplo.

No blog “Certas Palavras”, em “o AO e a Guerra na Ucrânia”, o autor tenta aduzir um argumento “racional” para se colocar contra o AO e que é o de “não servir absolutamente para nada”. Pensa que a grande maioria dos oponentes ao “acordo” o fazem apenas por motivos “tribais” ou “patrióticos”, ou seja, ”irracionais” e ditados por pura emoção. O post em si, apesar das boas intenções, apenas fornece argumentos aos defensores do dito “acordo”, que sempre refutaram todas as críticas que têm sido feitas precisamente com aqueles mesmos argumentos: a rejeição do AO é uma reacção puramente emocional, ditada por um patriotismo ultrapassado e por uma forte resistência à mudança. Em suma, os anti-acordistas que ainda restam (a imensa maioria da população) nada mais serão do que uns velhos do Restelo, uns fundamentalistas do pior, atrasados e apegados a tradições sem sentido.

Ora, os fundamentalistas são precisamente os acordistas, que desbaratam um património comum (sim, comum a todos, portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos, guineenses, cabo-verdianos e tantos outros espalhados por este mundo fora) apenas para criar e impor uma verdade à medida da sua bolsa e de outros interesses ainda mais obscuros e inconfessáveis. Fingindo e arrogando-se ser guardiões do que é de todos, vão desvirtuando o que não é deles, criando uma mitomania que apenas serve de sustento a uns quantos espertos. Os fundamentalistas são os acordistas, seguidores de um neoliberalismo histérico, traduzido no tão em voga “turismo linguístico” que não é nem uma coisa nem outra, mas apenas uma vulgar forma de proxenetismo.

Uma língua desenvolvida pelo uso contínuo das gentes, que é o resultado do latim vulgarizado  em amálgama com a fala dos celtas e dos godos, por exemplo e em traços muito gerais, falares aqueles que por sua vez se misturaram com o dos povos adoradores de Endovélico, que já cá estavam, e a que posteriormente se adicionou a doçura e a vivacidade do Árabe. Um legado que nos foi transmitido “de jure”, algo abscôndito, indizível e intraduzível, como são todos os verdadeiros laços que nos ligam aos que já não estão connosco e àqueles que depois de nós virão. Não é um “activo”, não é um “bem transaccionável”, eufemismos que servem para exprimir a coisificação de algo que nos transcende. Não é a coisificação da língua que queremos, é a sua entificação.

Sim, a língua é um ente, um ser vivo com identidade própria; é um ser e vive e desenvolve-se e  reproduz-se; sendo nós ao mesmo tempo seus criadores e seus mantenedores. Temos o privilégio de falar e escrever uma língua que é só nossa (e neste “nossa” incluo ecumenísticamente todos os seus falantes de todas as latitudes), o que comporta igualmente o dever imanente de a transmitir fielmente aos que depois de nós vierem.

A língua portuguesa falada e sobretudo escrita é a aristocracia para todos, como dizia Sophia de Melo Breyner a propósito do socialismo. É a possibilidade de todos os seus falantes se entenderem através de uma plataforma comum que possibilita a criação de uma verdadeira cumplicidade feita de várias partilhas. Cumplicidade não significa promiscuidade, não significa abastardar um património comum para criar uma aproximação que já existia e, sobretudo, para criar oportunidades de desenvolver negociatas espúrias.

O AO90 é um esquisito “porreirismo”, divide quando diz aproximar: nas palavras que têm uma grafia em Portugal e outra no Brasil, em todas as facultatividades que consagra! Vai fatalmente contaminar a pronúncia da língua portuguesa, afastar as palavras da sua raiz etimológica, vai empobrecer irremediavelmente a forma como exprimimos o que pensamos e sentimos e, a prazo, limitar seriamente a nossa percepção do mundo. Tal é o perigo de tão nefasto “Acordo”!

 

Da invisibilidade

Dizem alguns anti-acordistas que quem defende o AO pretende ostracizá-los colando-lhes na lapela uma espécie de estrela de seis pontas, como outrora se fez com os judeus. Os defensores e propagandistas do “acordo”, apoiados por grandes cartéis de Comunicação Social (cujo único objectivo é maximizar os lucros) e por um sistema educativo público fragilizado, simplesmente ignoram ou remetem para o estatuto de caduca curiosidade todo e qualquer oponente ao AO. Já nem a esmola de os (nos) considerar fundamentalistas lhes (nos) concedem. Condenam-nos à invisibilidade.

Falam do juiz Rui Teixeira, que recebeu uma repreensão escrita por ter instado funcionários da Segurança Social a redigir peças processuais em português correcto, mas esquecem-se de que Rui Teixeira foi o juíz responsável pelo polémico processo Casa Pia. Criou por isso muitas inimizades e a não aplicação do AO foi apenas um pretexto para certos sectores da justiça o “castigarem” pela sua acção no referido processo.

Falam também da adorável  Edviges, presidente (apetece-me dizer “presidenta”) da Associação de Professores de Português que exigiu a penalização em exame dos alunos que não sigam o AO, vontade a que o Ministério da Educação prontamente anuiu.

O problema, penso, não é a ostracização daqueles que não seguem o AO mas a sua invisibilização, sobretudo quando não se rendem ao “star system”, aqueles que não têm mais nada a oferecer a não ser uma luta sem quartel a quem pretende destruir a nossa (de todos) língua portuguesa; não há cá tachos, não há prebendas, não há sequer a oportunidade de brilhar nos “media”.

Já do lado dos acordistas, que monopolizaram o Estado, as grandes editoras, os grandes grupos de comunicação social…bem, é só ver as grandes conferências que organizam, as possibilidades que concedem a si mesmos de editar livros, gramáticas, dicionários; de alguns espertos aproveitarem a onda e organizarem acções de formação(?) muito bem pagas. O que é que é mais tentador para a grande maioria das pessoas, sobretudo quando precisam, como todos nós, de ganhar a vida? Creio que a resposta já foi dada.

O que poderá então motivar alguém a continuar a lutar por uma causa aparentemente perdida? Para além da óbvia e estafada consciência tranquila…

Se virmos bem, a época contemporânea é de grandes progressos mas, paralelamente, a falta de confiança no mundo nunca foi tão grande. Não há nada nem ninguém em que seja possível acreditar. Homens providenciais? Quantas vezes não se revelaram já como autênticos ditadores? Sistemas políticos, mesmo os sistemas democráticos? Toda a gente sabe como funcionam. Já nem as crianças acreditam neles. Universidades? Para além de se terem transformado em autênticas fábricas de desempregados, quem de lá sai apercebe-se imediatamente que de lá saiu ignorante de todo (Edgar Morin dizia a propósito que as Universidades produzem a alta cretinização enquanto os média produzem a baixa cretinização). Religião? Aplica-se o mesmo que aos sistemas políticos.

Então o que resta? A língua portuguesa, que tanto foi usada por Teixeira de Pascoaes como por António Aleixo, a língua que nos foi transmitida no berço e que transmitiremos a quem depois de nós vier.

A defesa das pronúncias e falares regionais que por vezes se vê por aí, inclusivamente defendida por académicos e outros especialistas, não passa de uma falsa defesa, de um respeito que se confunde com imitação. Respeitar a pronúncia e a fala do quotidiano, os falares regionais, que são realmente a expressão de uma certa maneira de pensar e de agir e que exprimem, é verdade, idiossincrasias próprias de cada região, isso não significa imitação. O que significa dar-lhes a dignidade que merecem, mas situá-las relativamente a uma norma de referência comum a todas.

Por isso o AO não passa, repito, de um esquisito porreirismo, uma falsa defesa da fala e da pronúncia. Introduz divisão quando diz que quer unir; impõe uma forma de escrever e, a prazo, de pronunciar (neste caso a variante brasileira em detrimento de todas as outras) quando diz respeitar a diversidade e pretender promover a aproximação entre todos os seus falantes. Vai criar, a prazo, uma divisão inexistente e perfeitamente inaudita entre escrita e pronúncia “culta” e uma vulgata enganadoramente amiga de quem estuda e aprende português. Vai, em suma, matar essa bela e generosa promessa que até agora tem sido a língua portuguesa, a tal  possibilidade de aristocracia para todos, mas mesmo todos, do grande magnata ao mais pobre dos sem-abrigo, da mais afectada das “tias” de Cascais ao mais humilde habitante de uma palhota em África.

É pela manutenção dessa promessa, dessa possibilidade que é a língua portuguesa que eu luto contra o AO e penso que é essa oportunidade única que a luta contra o AO oferece a quem a ela se dedica de corpo e alma: a oportunidade de lutar por algo tão intangível e precioso como são todos os verdadeiros laços que nos ligam aos outros. Algo que nos transcende, que não tem preço mas tem valor, todo o valor!

Algo, enfim, que está muito, muito acima da nosso comezinho quotidiano. É isto que representa a luta contra o AO.

Olga Rodrigues

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Fotografia de topo: Yesterday Channel – UKTV (Outsiders in Nazi Germany)