Embora o não mencione expressamente neste artigo, a autora refere-se (na minha opinião, obviamente) à tradução enquanto ou como sendo obra de autor. A frase final do texto é clara quanto a esta asserção: «As traduções pertencem a quem as realiza.»
Isto mesmo está previsto (e protegido) no Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC):
Artigo 172.º
(Regime aplicável às traduções)
1 – As regras relativas à edição de obras originais constantes da secção I deste capítulo aplicam-se à edição das respectivas traduções, quer a autorização para traduzir haja sido
concedida ao editor quer ao autor da tradução.
2 – Salvo convenção em contrário, o contrato celebrado entre editor e tradutor não implica cedência nem transmissão, temporária ou permanente, a favor daquele, dos direitos deste sobre a sua tradução.
Portanto, parece-me ser de interpretação pacífica a analogia entre um contrato de edição firmado entre Autor e Editora e um outro entre Editora e Tradutor. Em ambos os casos, como já aqui referi, a Editora não poderá “acordizar” uma obra (original ou tradução) se do respectivo contrato constar uma cláusula “ne varietur”.
A tradução ou o rio da língua materna – margens estreitas, leito profundo
Teresa Rodrigues Cadete
As tradutoras e os tradutores devem ser respeitados e consultados em todas as questões relativas ao seu trabalho.
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Comemorações podem causar sobressaltos. Em qualquer caso são desafios e, todos os anos, a data de 21 de Fevereiro surge para nos recordar que o Dia Internacional da Língua Materna pode aproximar as línguas da concepção humboldtiana de organismos vivos, logo ameaçáveis. Mas elas são sempre mais do que isso, mesmo sem precisarmos de falar aqui nessas línguas minoritárias que são formas de respirar, interagir, arte-fazer. Neste sentido, uma língua é muito mais do que um organismo porque se entretece no mundo e impregna o nosso modo de estar nele e de o transformar, metamorfoseando-nos também. Compete por isso a quem pretende tornar este mundo mais habitável – ou, num limite mínimo, manter um grau de habitabilidade familiar e sustentável – reflectir sobre as condições de possibilidade de des-funcionalizar a língua. Com isto quero dizer: criar, cultivar e fruir espaços e tempos em que ela surge como arte, privilegiadamente literária e performativa.
Encarada frequentemente como subsidiária do original, a tradução literária tem vindo a sofrer – salvo honrosas excepções de tradutores conhecidos ou que têm ousado impor os seus direitos – frequentes formas de funcionalização, em parte determinadas pela visão economicista de muitos editores. Conscientes da necessidade de reabilitar a dimensão criativa da tradução literária, os escritores reunidos em Québec em Outubro de 2015, no âmbito do 81.º Congresso do PEN Internacional, aprovaram por unanimidade uma Declaração que pretende fazer valer os direitos dos tradutores, a par da dignificação dessa dimensão re/criativa que pode assemelhar-se ao leito profundo de um rio dotado de estreitas margens. São estas margens a matriz literária; é o profundo leito o número de possibilidades dentro dos limites dados, que desejaríamos que não o fossem por contingências editoriais mas a priori pelo tecido significante do original.
O enorme prazer que nos é dado por uma edição bilingue (quase só possível em poesia), detectando similitudes e divergências entre original e tradução, pode encontrar uma correspondência na leitura de uma prosa que parece escrita na língua original, ou seja, num texto conseguido na língua de chegada. Não é raro que os amantes desse jogo de revelações e ocultações possuam originais e traduções, pelo puro prazer da leitura comparada.
Neste espírito, as três versões da declaração são três originais e não traduções literais em francês – a primeira a ser elaborada, respeitando a língua materna do lugar que viu aprovar a Declaração –, inglês e castelhano. A versão que proponho foi feita a partir de uma desafiante aproximação das outras três (que podem ser lidas no site do PEN Internacional, a par de outras):
1. A tradução literária é uma arte de paixão. Portadora de valores de abertura, ela permite ascender ao domínio universal enquanto vector privilegiado do diálogo entre as culturas. É um factor de paz e liberdade, bem como um baluarte contra a injustiça, a intolerância e a censura.
2. As culturas não são iguais face à tradução. Algumas delas traduzem por opção, outras por obrigação. A tradução está associada à defesa das línguas e das culturas.
3. As tradutoras e os tradutores, ao respeitarem os autores e as obras originais, não têm porém como mero objectivo a reprodução de um texto: enquanto criadores de pleno direito, eles prolongam-no e fazem-no avançar. Mais do que mensageiros, eles são portadores da voz dos outros, sem perder por isso a sua. Defensores da diversidade linguística e cultural, eles empenham-se na defesa de autores, estilos e grupos marginalizados.
4. Os direitos das tradutoras e dos tradutores devem ser protegidos. As instâncias governamentais, os editores, os meios de comunicação e os empregadores devem reconhecer e nomear claramente as tradutoras e os tradutores, respeitar o seu estatuto e as suas necessidades, assegurar-lhes uma remuneração justa e condições de trabalho dignas, seja qual for o suporte utilizado – papel, digital, áudio, vídeo.
5. A integridade física e a liberdade de expressão das tradutoras e dos tradutores devem ser sempre garantidas.
6. Enquanto autores de criação, dotados de um saber que os distingue, as tradutoras e os tradutores devem ser respeitados e consultados em todas as questões relativas ao seu trabalho. As traduções pertencem a quem as realiza.
Teresa Cadete
(Escritora, Professora universitária e presidente do PEN Clube Português)