Faltará, quiçá, apenas apurar o que tem tudo isto a ver com o “acordo ortográfico”, directa ou indirectamente. Na minha opinião, olhando para os dois primeiros nomes da “Comissão Científica Permanente da AICL“, não há nisto tudo absolutamente nada de indirecto.
Como já vimos, estes “lusofónicos” e pevidelaureantes eventos são altamente patrocinados por beneméritos do calibre de um Bechara e de um Malaca, logo à cabeça.
Ainda assim, à cautela, desconfiei de tal fartura de dois, tão rotundos e proeminentes patronos, e portanto pus-me a verificar se porventura não teriam eles apenas emprestado suas graças para abrilhantar os eventos, isto é, se os próprios se meteriam pessoalmente em tais assados. Pois não há que enganar, os homens estão lá mesmo, parece-me até que vão a todas (as jantaradas e patuscadas), quer dizer, estão nas mesas dos jantares dando ao dente e estão também na mesa de cada um dos colóquios. Se bem que nestas últimas mesas dêem pouco à língua , acho até que d’habitude não abrem a boca, estão ali apenas para, com o peso institucional de suas não muito etéreas pessoas, conferir prestígio — e algum lastro de aparente seriedade — aos ofícios coloquiais.
Como se pode constatar no vídeo fotográfico que se segue, ambos os beneméritos aparecem, por junto ou por atacado, em várias das comezainas e em diversas das coloquiações.
Ficámos já cientes de que estes “colóquios” não passam de uma forma de promover o AO90. Nada subtil, a forma, pelo contrário, sendo esta relação de causa e efeito apresentada até com inusitado descaramento: com o engodo de umas férias “bem” passadas, os “colóquios da lusofonia” são mera propaganda acordista. Ponto.
Mas, se dúvidas subsistirem, oiça-se o que diz Bechara numa entrevista à TDM, no âmbito do 15.º Colóquio (2011): fala profusamente do “bloco linguístico a que chamamos lusofonia”, atira com a balela da “unificação” e assim por diante, lá vai ele desfiando ao longo de meia hora o chorrilho de patranhas do costume.
Se quisermos ter uma ideia, quanto mais não seja por estimativa (ou até por palpite), do interesse que estes eventos “internacionais” suscitam nos oito países “lusófonos”, podemos, por exemplo, espreitar o número de visualizações da dita entrevista: 2! (Duas!)
Donde se conclui que houve, neste mundo, ao longo de dois anos, duas pessoas que visualizaram a peça: o autor da dita e… eu! Há coisas fantásticas, não há? E isto passa-se numa “playlist” monotemática, só sobre os “colóquios” (e eventos com eles relacionados), que reúne um número impressionante de gravações: 193!
De tal sorte é o empenho de todo o “povo lusófono” na “difusão da língua”. Ignora quase toda a gente, ou ostensivamente por ignorância ou olimpicamente se calhar por má vontade, um pequeno grupo de pessoas, qual seita microscópica, que proporciona amiúde aos seus membros uns quantos dias de férias em hotéis e casinos
Pronto, está bem, e isso o que tem? O que tem de errado organizar umas jantaradas e uns passeios turísticos para entreter os coloquiadores e os coloquiados antes e depois dos “colóquios”?
Bem, nenhuma dessas festivas e lúdicas (in)actividades é ilegal. De jeito nenhum!
Não sejamos maniqueístas, aliás: nem todos os acordistas são desonestos, assim como nem todos os anti-AO90 são anjos impolutos. Bem pelo contrário. A “inteletual”, poetisa e “ativista“ Natália Correia, por exemplo, era acordista até ao tutano, salvo seja, e não consta que fosse em geral pessoa corrupta ou que tivesse sequer o mais ínfimo interesse pessoal no aleijão ortográfico. Também por exemplo, do lado oposto encontramos igualmente umas patuscadas e jantaradas, sendo estas golpadas promovidas por gentinha que pretende apenas promover-se a si mesma a pretexto da luta contra o “acordo”. Mas nem este (triste) facto atenua sequer um pouco a revolta que em essência me provocam estas palhaçadas, estas (outras) jantaradas e patuscadas em que abancam excursionistas de calções e chinelas.
Uns banhos de Sol na praia e umas jogatanas no casino mais próximo, a fingir que aquilo é um “colóquio”, eis, em suma, o programa destes eventos de “promoção da lusofonia”. Turismo linguístico, pois sim, mas com tudo de turismo e com nada de linguístico.
“Lusofonia”? Porventura alguém consegue vislumbrar um vestígio disso, ainda que vago, uma réstia que seja, em qualquer dos vídeos promocionais destes “colóquios”? Qual é a diferença entre um vídeo publicitário de qualquer agência de viagens e, por exemplo, o do “24.º colóquio da lusofonia”?
De 2002 a 2015, não exactamente por esta ordem, marcharam 24 eventos quejandos: Porto, Bragança, Seia, Macau, Brasil (?), Galiza (Ourense), Açores (Ribeira Grande, Lagoa, Vila do Porto), Maia e Fundão.
De notar, com atenção, a quantidade e, principalmente, a qualidade dos protocolos, acordos, convénios e parcerias de entidades e organizações, públicas e privadas, que apoiam estes eventos que apenas aos próprios interessam e dos quais a generalidade dos cidadãos não sabe absolutamente nada.
Este de 2015 foi o último, parece já estar previsto o de 2016, mas, entretanto, já vai aparecendo alguma concorrência…
I Congresso Internacional de Língua Portuguesa. 13 e 14 de outubro de 2016. Universidade de Santiago de Chile – Santiago, Chile. Prazo: 23 mar. 2016.
[Source: Chile | I Congresso Internacional de Língua Portuguesa]
No “site” oficial deste evento, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian e organizado pelo Instituto Camões, o texto de apresentação (não vi os outros, por questões de saúde, ordens do médico, “fique longe de substâncias tóxicas”) está integralmente redigido com a ortografia brasileira. Desconheço se este recém-criado concorrente poderá vir a fazer sombra à AICL, na presunção de que havendo um I Congresso então depois haverá o II, o III, etc.
Nem isso é da minha conta, pois claro.
Mas é da minha conta, como é da conta de qualquer outro cidadão português, tomar conhecimento de algo que respeita a todos porque é de todos.
Será a este regabofe de banquetes e estadias em casinos, hotéis e “spas”, que os acordistas se referem quando falam do “potencial económico da língua“?
Não me parece. A “lusofonia” de casino é “só” uma modalidade turística, uma variante lúdica de um plano político bem mais abrangente, elaborado e sinistro.
‘The proles are not human beings,’ he said carelessly. ‘By 2050 earlier, probably — all real knowledge of Oldspeak will have disappeared. The whole literature of the past will have been destroyed. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron — they’ll exist only in Newspeak versions, not merely changed into something different, but actually changed into something contradictory of what they used to be. Even the literature of the Party will change. Even the slogans will change. How could you have a slogan like “freedom is slavery” when the concept of freedom has been abolished? The whole climate of thought will be different. In fact there will be no thought, as we understand it now. Orthodoxy means not thinking — not needing to think. Orthodoxy is unconsciousness.’
George Orwell > 1984 > Part 1, Chapter 5