Uma opinião vale o que vale

Mais uma vez, a tese da ilegalidade do AO90 por não ter sido ratificado o 2.º Protocolo Modificativo e portanto não ter entrado em vigor em todos os Estados signatários.

Bem, é uma opinião, vale o que vale. Claro que a minha própria opinião neste particular vale muitíssimo menos, até porque se fundamenta não em argumentos jurídicos, para o que não estou devidamente habilitado,  mas “apenas” em pressupostos morais, que a todos por igual assistem; mantenho a minha opinião, por conseguinte, reiterando do mesmo passo a objecção fundamental quanto à referida tese: se a ilegalidade consistisse unicamente no facto de Angola e Moçambique não terem (ainda?) determinado a respectiva entrada em vigor, então assim que ambos o fizessem a entrada em vigor do AO90 deixaria de ser ilegal em Portugal. Hipótese que, se mesmo fosse remota (que não é) ou meramente académica (o que ainda menos será), jamais poderia transformar automaticamente em algo de aceitável aquilo que é de todo inaceitável: a ortografia vigente na República Portuguesa não pode em caso algum ser determinada por países terceiros.

Nota: o texto agora reproduzido é uma versão do publicado pelo mesmo autor no semanário “O Diabo”, também aqui reproduzido em 23.12.15. Existem outras questões, suscitadas tanto nesta como na versão anterior, que mereceriam ainda mais anotações mas, para já, ficamos pelo essencial.

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O “Acordo Ortográfico” de 1990 não está em vigor

Carlos Fernandes

09/02/2016 – 06:15

Ao contrário do que por aí se diz, o que está em vigor em Portugal, de iure, é a ortografia fixada pela Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945. O AO/90 não está em vigor em nenhum Estado.

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O AO/90 (= “Acordo Ortográfico” de 1990) na sua formulação original e na modificação desta pelo 2.º Protocolo Modificativo, a meu ver, não estão em vigor em país nenhum dos seus signatários, por falta de aceitação por Angola e Moçambique.

A imposição inconstitucional do AO/90, à força, em Portugal, através de uma simples Resolução do Conselho de Ministros (= RCM n.º 8/2011, de 25 de Janeiro), a meu ver, é manifestamente inconstitucional, pelo menos, orgânica e formalmente, e, como consequência, nula e de nenhum efeito, porque legisla sem o poder fazer, violando claramente o disposto no artigo 112.º, n.º 1, da Constituição.

Apesar disto, e por mais que isso custe a compreender, ninguém, neste Portugal morno e esquisito em que vivemos, se rebelou contra tão graves violações constitucionais, como obviamente se impunha, em face de uma imposição juridicamente intolerável, por demais violenta, ao aborregado Povo português, único senhor da língua portuguesa em Portugal, mas pouco preocupado em defendê-la. Docentes de todos os níveis escolares, juristas, tribunais, jornalistas e jornais, com a vergonha do Diário de Notícias, demonstrando uma crassa ignorância, onde, ninguém, até agora, quis estudar o problema devidamente, envergonhando-nos a todos nós esta inaceitável passividade colaborante com os que, ilegalmente, mutilaram a nossa bonita e rica língua, inventando uma ortografia, e, finalmente, uma pronúncia, teratológicas. Como se explicará essa atitude? Para mim, só a pobreza material e cultural generalizada, em que, supostos governantes nos colocaram, poderá explicar – embora não justificar – este aborregamento colectivo, que fácil e serenamente se tem verificado, à voz de qualquer pastor, mais ou menos interessado, aceitando, sem contestação significativa, cumprir ordens, não só ilegais, mas também manifestamente inconstitucionais.

Ora, dado o teor do 2.º Protocolo Modificativo, de que Portugal é parte desde 17/9/2010 (o qual, na minha opinião, ainda não vigora), e o espírito da política linguística (ortografia) que ele consagra — essencialmente oposta à do AO/90 inicial —, é, para mim, e certamente para qualquer jurista patriota que examine o problema em causa, sem parti pris, e tão objectiva e cientificamente quanto possível, é, reitero, inadmissível que um Presidente da República, defensor institucional da Constituição e rodeado de tantos assessores altamente qualificados, e um Primeiro-Ministro a tutelar a área da Cultura, cometessem as graves e inoportunas inconstitucionalidades que, a meu ver, cometeram, e que creio serem verdadeiros atentados ao Estado de Direito.

É sobretudo incompreensível, para mim, a passividade colaborante dos Tribunais, por várias e válidas razões:

porque eles são o órgão de soberania específico para administrar a justiça, em nome do povo, sendo este que, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Constituição, detém a soberania, una e indivisível, tendo, assim, por dever funcional, aplicar o Direito vigente legalmente, e o de opor-se, necessariamente, às ilegalidades e inconstitucionalidades (v. referido artigo 3.º, n.º 3, e artigo 277.º, n.º 1, da Constituição);
porque, a meu ver, qualquer quidam medianamente Iniciado em ciências jurídicas, que leia o texto da RCM 8/2011, de 25 de Janeiro, não poderá deixar de concluir, imediatamente, que é inconstitucional, por várias evidências: uma, por legislar, quando isso só pode ser feito por lei ou decreto-lei (v. artigo 112.º, n.º 1, da Constituição); outra, porque os acordos internacionais não são postos em vigor por resoluções governamentais (até os acordos de exclusiva competência material do Governo têm de submeter-se a um decreto aprovado em Conselho de Ministros — v. artigo 197.º, nº 2, e artigo 200.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, da Constituição —); em terceiro lugar, porque têm o dever elementar de saber que o AO/90 não está legalmente em vigor em país nenhum dos seus sete Estados signatários, por falta de aceitação por parte de Angola e Moçambique, e, ilegalmente, só foi imposto em Portugal; finalmente, em quarto lugar, porque o 2.º Protocolo Modificativo, de 2004, alterou, essencialmente, o teor e filosofia do AO/90 original, e, por isso, as ratificações de 1991 (Portugal) e de 1995 (Brasil), etc., não podem, lógica e juridicamente, subsumir-se às alterações essenciais atrás referidas, feitas pelo acordo do 2.º Protocolo Modificativo, de que Portugal é parte desde 17/9/2010, mas que, em meu parecer, ainda não vigora em nenhum dos Estados signatários, por falta de aceitação por parte de Angola e Moçambique (porque, como eu entendo, não obedece à unanimidade de ratificações).

Mas, para sermos mais claros quanto à inconstitucionalidade da RCM 8/2011, deve observar-se o seguinte:

é de reiterar que por ela se legislou, quando não o podia fazer;

porque, decididamente com o propósito de legislar, o Governo de Sócrates a emitiu com o pretexto de, com isso, estar aplicando o disposto na alínea g) do artigo 199.º da Constituição, com a finalidade de pôr em vigor, desta maneira abstrusa, o AO/90, já como modificado pelo 2.º Protocolo Modificativo (como referimos supra, não vigora legalmente em nenhum Estado dos seus sete signatários, e, ilegalmente, só em Portugal), tal como o Vocabulário Ortográfico do Português, que Portugal, sozinho, elaborou, e está, ilegalmente, a aplicar, violando, assim, expressamente, o disposto no próprio AO/90 original, que exige, para que o vocabulário vigore, a aceitação pelos sete Estados signatários (a unanimidade) — é de notar o que querem esquecer, isto é, que o 2.º Protocolo Modificativo nem sequer refere o Vocabulário Ortográfico do Português, e, por conseguinte, terá de conformar-se com o disposto no AO/90 original quanto à respectiva entrada em vigor (a sua unânime aceitação por todos os signatários do AO/90).

De tudo o que expusemos, é de concluir que o 2.º Protocolo Modificativo de 2004, que, retroactivamente, modifica, essencialmente, o teor e filosofia unificadores do AO/90, teria de estar em vigor nos sete Estados signatários deste, para poder alterá-lo como pretendem, mas acontece que não está em vigor, porque Angola e Moçambique, que não aceitaram, como vimos supra, o AO/90, também se recusam a aceitar o acordo do 2.º Protocolo Modificativo dele.

É lógico, e, para mim, óbvio, que a aceitação, só por três dos Estados signatários, não pode alterar o teor e filosofia do AO/90 original, para, por este meio, o pôr em vigor (como, anteriormente, não conseguiram a sua aceitação pelos sete Estados signatários, recorreram ao estratagema do 2.º Protocolo, estratagema que, afinal, não vingou).

Por outro lado, mesmo que não se entendesse como eu entendo, acontece que, como a essência do AO/90 foi indiscutivelmente alterada pelo disposto no acordo do 2º Protocolo, o AO/90, porque essencialmente modificado, tem outro teor, obedecendo, por isso, a outra filosofia linguística (ortografia não unificada), acabando, assim, a unanimidade da ortografia da língua portuguesa e, portanto, tudo isto só teria sentido se viesse a ser novamente ratificado, já que é agora outro acordo, devido à alteração substancial que lhe é feita pelo disposto no acordo do 2º Protocolo. Assim, é, para mim, absurdo que se pretenda validar, para efeitos de entrada em vigor do AO/90 como agora essencialmente modificado, as ratificações feitas em 1991 e 1995, etc., relativamente a um acordo complementar diferente, isto é, que as três ratificações antigas (e não outras) fossem agora suficientes para o AO/90 modificado entrar em vigor, nos termos do disposto no acordo do 2.º Protocolo, ipso facto, aquelas mesmas que foram feitas em contexto diferente há muito tempo. Demais, é de notar, o acordo do 2.º Protocolo, no seu texto, não esclarece se são ou não as feitas ou outras a fazer, só tendo sentido, a meu ver, que sejam outras a fazer e não as feitas.

A problemática da entrada ou não em vigor do AO/90 — que, já lá vão 25 anos, e, se não conseguiram pô-lo em vigor, legalmente, em Estado nenhum, é porque, obviamente, não presta —, essa problemática, reiteramos, implica duas fases: uma, antes do 2.º Protocolo Modificativo, outra, após este acordo.

Ora bem, o problema relativo à primeira fase é este: terá o AO/90, antes do acordo do 2.º Protocolo (2004), entrado em vigor para algum dos sete Estados signatários?

A resposta é não; e, não só não entrou em vigor, como não estará em condições de entrar em vigor.

Porquê?

Porque, para entrar em vigor, o AO/90 exige a aprovação final unânime dos sete Estados signatários, tal como o previsto Vocabulário Ortográfico, e não a teve, porque Angola e Moçambique se recusam a ratificá-lo, constando que não o farão.

O problema da segunda fase consiste em saber se o acordo do 2º Protocolo Modificativo fez ou não com que o AO/90 tenha entrado em vigor para algum dos sete Estados signatários.

A resposta, a meu ver, é que não fez, nem poderá fazer.

Porquê?

Por várias ordens de razões:

porque o acordo do 2º Protocolo Modificativo modificou, essencialmente, o teor e a filosofia do AO/90 original, ao dispor que este pudesse entrar em vigor após a ratificação apenas de três dos sete Estados signatários, em vez da unanimidade;
mas, para poder efectivamente modificar substancialmente o teor e a filosofia do AO/90, teria, a meu ver, de haver um acordo unânime dos Estados signatários para tal ser legal, o que não acontece, pois Angola e Moçambique, que já não ratificaram o AO/90 original, isto é, antes da modificação imposta pelo 2º Protocolo, também se recusam a ratificar o acordo deste 2º Protocolo, pelo que, assim, juridicamente, o teor e a filosofia do AO/90 continuam por modificar, e, por conseguinte, sem que ele possa entrar em vigor;
o acordo do 2º Protocolo não diz quantos Estados têm de o ratificar para poder entrar em vigor, mas, racionalmente, como já referimos na alínea anterior, só se entende que o seja por todos os Estados seus signatários, sem excepção;
porém, mesmo que o acordo do 2º Protocolo pudesse entrar em vigor apenas com as ratificações de três dos seus Estados signatários, isto, a meu ver, apenas implicaria a mudança substancial do teor e filosofia do AO/90, não implicando, contudo, ipso facto, a sua entrada em vigor;
com efeito, para essa entrada em vigor poder efectuar-se, legal e constitucionalmente, teria de ser de novo ratificado, como modificado, pelos três Estados ratificantes, e não o foi, nem, a meu ver, vai ser viável fazê-lo;
Isto quer dizer que as ratificações feitas em 1991 e 1995, ou noutra data de há anos, insuficientes para então pôr em vigor o AO/90, não poderão, lógica e juridicamente, ser consideradas como ratificantes deste novo acordo (que é o AO/90 modificado), mesmo que o acordo do 2º Protocolo estivesse em vigor, o que, a meu ver, não acontece, como referimos nas alíneas a) b) e c) supra.

Portanto, sendo isto assim, o AO/90 não está nem pode estar em condições de vigorar em nenhum dos seus Estados signatários, não tendo surtido efeitos o sucessivo recurso a várias manobras de lesa-língua portuguesa e de lesa-unamidade ratificativa, bases da filosofia uniformizadora do AO/90 original.

Os que negociaram o AO/90 e os que pretendem pô-lo em vigor, custe o que custar, partem do principio, completamente errado, de que antes deste acordo não havia nada — seria o caos ortográfico —. É incrível, mas é assim, tal como na política e na cultura, antes do 25 de Abril. Esqueceram-se, ou ignoram, que a ortográfica fixada em 1945, em vigor em Portugal e seu Ultramar desde 1 de Janeiro de 1946, teria de ser juridicamente revogada, para se poder aplicar qualquer outra.

Portanto, reiteramos, como a ortografia de 1945 não está revogada, e só o pode ser por lei ou decreto-lei, terá de sê-lo para deixar de vigorar, e, como o AO/90 não está, nem, a meu ver, pode estar em vigor, legalmente, em nenhum dos seus Estados signatários, é a ortografia de 1945 a única a vigorar, actualmente, em Portugal.

Carlos Fernandes, Embaixador

[Jornal “Público” de 09.02.16. Inseri “links” e destaques.]