Muhammad Saeed al-Sahhaf não está em vigor

Diz-se por aí: do AO90 não consta uma disposição revogatória do AO45, portanto é este que está legalmente em vigor.

Um dos que “interviram” sobre a (falta de) revogação expressa do AO90 foi o embaixador Carlos Fernandes; “interviu” sobre o tema garantindo até, por A mais B, que o “acordo” de 1990 “não está em vigor” em Portugal. Outros igualmente “interviram” no mesmo sentido, ou  simplesmente opinando sobre o caso ou de forma geral metendo sua colherada em tão interessante  assunto.

Foram, portantos, uma data deles a “intervirem”, mas “tenhemos” a humildade de reconhecerem-mos que alguns inté tiverem muntas rezões, ou, ò menes, um cadinhe, vá.

Trata-se, neste particular, de um fenómeno que vulgarmente se designa como “pôr-se a jeito”. Os acordistas nem precisam de se cansar em refregas ou sequer ralar-se a disparar quando há tiroteio: alguns dos seus adversários encarregam-se por si mesmos de dar vários tiros em ambos os (próprios) pés.

Num caso por acaso, “tenhemos” a humildade de reconhecer que, por exemplo e para variar, este acordista militante até é capaz de ter alguma razão:
«Entre os pecados atribuídos ao Acordo Ortográfico — religião em que o jornal Público é sacerdote – contam-se normalmente dois, nomeadamente o de que afinal o AO não está legalmente em vigor (…). Sem fundamento, porém. Primeiro, na nossa ordem constitucional os acordos internacionais valem na ordem jurídica interna sem necessitarem de ser transpostos por lei e até prevalecem sobre a lei doméstica preexistente, pelo que as suas normas só podem ser alteradas por novo acordo.» [Vital Moreira]

Em suma, digamos, mas em linguagem de pessoas normais, existem três formas (principais) para a revogação de uma lei: a expressa (com disposição revogatória formal), a implícita (algo como “a presente lei revoga todas as que com ela sejam incompatíveis”) e as inerentes ou factuais (por exemplo, quando o III Reich caiu, todas as leis do Reichstag e de Hitler  tornaram-se automaticamente nulas e de nenhum efeito).

“Tenhemos” a humildade, partantes, de ver alguma coisinha do que dezerem as leizes sobre este assunte.

Código Civil: «A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.»

Convenção de Viena: «Quando uma obrigação tenha nascido para um terceiro Estado, nos termos do artigo 35.º, essa obrigação só pode ser revogada ou modificada mediante o consentimento das Partes no tratado e do terceiro Estado, salvo se de outro modo tiverem acordado.»

Do que resulta, em Português de lei e quanto aos factos em apreço, que

a) Ao AO90 aplica-se a revogação por “incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes”;
b) Quanto ao 2.º Protocolo Modificativo, deixa de haver a regra da unanimidade “se de outro modo tiverem acordado”, como foi o caso;
c) Logo, a única forma de interromper/liquidar o processo é revogar/anular a RAR 35/2008, que aprovou o 2.º Protocolo (o qual faz vigorar em todos o AO90 após ratificação por apenas três dos oito Estados).

Exactamente, assim mesmo, em forma de simples silogismo, eis o que sempre dissemos, foi por isto e com estes básicos fundamentos que lançámos a ILC em Abril de 2010.

Seis anos depois, desata toda a gente a dizer que, ah, e tal, o AO45 continua a vigorar, afinal de contas o de 1990 não interessa para nada.

Eia. A sério? Dizendo-se e até demonstrando-se que “o AO90 não está em vigor” ele deixa mesmo de estar em vigor no Ensino, por exemplo? Cessa portanto a sua obrigatoriedade nos exames? Acabam-se as perseguições aos professores e aos funcionários que se recusarem a acatar ordens superiores? Tudo não passa afinal de uma alucinação colectiva? As legendas dos filmes, os jornais, as revistas, os livros, tudo isso continua em Português-padrão? Andamos há seis anos, seis, a imaginar que a ortografia foi assassinada? Temos todos visões, em suma, ou fomos  maciçamente atacados por alguma nova espécie de pandemia oftalmológica que agora, de repente, apenas formulando o santo-e-senha “o AO90 não está em vigor”, se cura miraculosamente?

Oh, maravilha das maravilhas! Mas que fantástico prodígio!

Basta negar a gente uma coisa, é suficiente jurarmos que ela não existe, e pronto, acabou-se, a dita coisa fina-se assim por si mesma, liquidada, aniquilada, fuzilada por um pelotão de argumentos, abatida pela força da verborreia jurídica. Tal é o poder das palavras!

Porque diabo não lhes ocorreu isto mais cedo, hem, santinhos? Se já conheciam a fórmula verbal, essa genial palavra-passe, abracadabra, oh, sádicos de um raio, bem poderiam ter-nos poupado (a) todos estes anos de excruciante sofrimento (à conta das referidas alucinações) e de uma extenuante luta que, destarte é forçoso concluir, por conseguinte, terá sido não apenas completamente inútil (olha, afinal não era preciso, aquela porcaria não estava em vigor) como apenas resultante do consumo excessivo de alguma substância ilícita, ou assim.

Mas…

Um momento. Será? Será mesmo?

Espera lá. O que é que isto (me) faz lembrar? Hem? Havia um tipo algures na Mesopotâmia, aquele grande cromo…

Ah, pois. Já sei, agora me lembro. O Ministro da Informação do regime de Saddam Hussein era outro que tinha o (cómico) hábito de negar repetidamente as evidências, no caso, a invasão do Iraque pelas tropas americanas, usando igualmente inacreditáveis (e anedóticos) “argumentos” para “provar” que não havia invasão alguma, bem pelo contrário, os yankees até tinham dado a fugir e tudo. “Tenhemos” a humildade de reconhecer que este também era muito engraçado quando “intervia”.

Al_sahafWe love the iraqi information minister

 

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2 Comments

  1. Isabel Coutinho Monteiro

    Ora bolas! Revogue-se então a maldita RAR 35/2008. Que trabalheira para nos livrarmos de um impecilho criado por imbecis.

    1. Os pressupostos da ILCAO, publicados em 2010, ainda hoje se mantêm, no fundamental, inalterados e actuais. Depois, a partir de finais de 2011 e, em especial, a partir de Fevereiro de 2012 (VGM/CCB), começaram a aparecer “alternativas” que tinham por finalidade, basicamente, liquidar não o AO mas a ILCAO. Enquanto as pessoas continuarem a andar por aí alegremente entretidas com números de circo, o “statu quo” estabelecido não encarará com um mínimo de seriedade uma luta genuína de todos que foi transformada em lamentável pantomina por alguns. Uma coisa é uma iniciativa cívica de âmbito nacional, outra coisa completamente diferente é haver umas quantas seitas no Fakebook a brincar às “causas”.

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