Que não restem dúvidas, que não sobrem ilusões: o «(des)acordo ortográfico de 1990» não é susceptível de qualquer aperfeiçoamento, melhoria ou revisão mas sim de uma erradicação completa e irreversível. Que, sim, não só é possível mas também indispensável.
Há 25 anos eram muitos os que não imaginavam, que não acreditavam, que os seus piores pesadelos nesta matéria se tornariam realidade. Eu e outros contestatários do AO90 pensámos (prematuramente, percebeu-se depois) que o «dito cujo carcará» ficara definitivamente morto e enterrado quando então se tentou implementá-lo pela primeira vez; nessa altura já estávamos… «acordados» para combater os delírios de candidatos a ditadores. Entretanto, e à medida das possibilidades de cada um, tentámos promover a Lusofonia – a verdadeira, a respeitadora e apreciadora das especificidades, a do «todos diferentes, todos iguais» – de vários modos; no meu caso, lendo, estudando, recolhendo informações, participando em acções de promoção cultural, escrevendo artigos e um livro – «Os Novos Descobrimentos», com Luís Ferreira Lopes, que neste ano de 2016 celebra(rá) o décimo aniversário da sua publicação…
… Até que, há cerca de dez anos, aconteceu que dois extremistas, dois radicais, alcançaram quase em simultâneo o poder em Portugal e no Brasil, e decidiram «desenterrar» uma aberração que tem tanto de imbecil como de inútil… e de ilegal. Curiosamente, um já esteve na prisão (José Sócrates) e o outro está quase a ir para lá (Lula da Silva). Porém, e o que é pior, os que continuaram no poder e/ou lhes sucederam não tiveram (não têm) coragem para acabar com esse atentado à cultura. Dois exemplos recentes… Primeiro, o de Aníbal Cavaco Silva – que, nunca é demais recordar, era primeiro-ministro quando o AO90 foi iniciado e Presidente da República quando aquele foi «finalizado»: não vetou em (Agosto de) 2015 uma resolução da Assembleia da República que ratificou em Portugal o acordo relativo ao Tribunal Unificado Europeu de Patentes, entidades cujas únicas línguas de trabalho são o Inglês, o Francês… e o Alemão; a resolução foi aprovada com os votos favoráveis do PSD e do CDS e com a abstenção do PS, isto é, os três partidos (ir)responsáveis pela subsistência do aberrante «acordês» – ou seja, os protagonistas desta capitulação são os mesmos da concepção e da implementação do AO90: diferentes momentos, diferentes assuntos, e, no entanto, a mesma incompetência, a mesma falta de patriotismo, a mesma subserviência face ao estrangeiro; este – lamentável – caso é mais um exemplo de como o dito «acordo» falhou, e continuará a falhar, no seu alegado objectivo principal – a de contribuir para o aumento da expansão e da projecção internacionais da língua portuguesa. Segundo exemplo, o de António Costa: o actual primeiro-ministro* afirmou em Janeiro último na SIC, no programa «Quadratura do Círculo», que «não tomo a iniciativa de desfazer o acordo ortográfico», mas, entretanto, não hesitou em tomar a iniciativa de desfazer a privatização da TAP; digamos que há coisas mais «desfazíveis», mais reversíveis do que outras… Os «acordistas» mencionam amiúde os (alegados) custos elevados de o «acordês» ser abandonado (patético «argumento»…); todavia, a «re-nacionalização» da transportadora aérea nacional poderá revelar-se tão ou mais dispendiosa do que mandar para a reciclagem livros e documentos cheios de erros.
Depois de três décadas de debate sobre a «questão ortográfica» ainda não me decidi sobre o que mais me surpreende nos «acordistas»: se a ignorância, se a desonestidade intelectual, se a cobardia… Algo que eles não compreendem claramente é o conceito de «evolução»: esta é uma transformação, ou conjuntos de transformações, que acontece(m) continuamente, muito lentamente, imperceptivelmente; são adaptações, respostas, a alterações ocorridas no ambiente (natural e/ou cultural). Obviamente, não serve como uma prova de «progresso» qualquer – ridícula, risível – lista de palavras que «perderam» as ditas «consoantes mudas». Porque basta olhar para outras línguas (mais?) civilizadas, como o Inglês, o Francês e o Alemão, e verificar que elas mantêm todo o «excesso» de letras… sem, indubitavelmente, isso ter efeitos adversos no desenvolvimento cultural dos respectivos países. Não é por acaso, evidentemente: maior complexidade – reflexo e receptáculo da história, da tradição, enfim, da etimologia – pode significar, ser, maior riqueza. Nem sempre a «simplicidade» é benéfica. O AO90 nada tem a ver com (a autêntica) evolução: tal como outras mudanças ortográficas abrangentes e súbitas ocorridas anteriormente, constitui(u) uma ruptura revolucionária causada, conduzida, por poucas pessoas, por pequenas minorias, aptas para imporem essas mudanças por estarem em posições de poder – e, frequentemente, poder ditatorial. Essas rupturas, feitas em nome de ideologias e não de necessidades reais, causa(ra)m perturbações, prejuízos – neste caso na língua, na ortografia. Para o comprovar nunca é demais apontar para os permanentemente altos índices de analfabetismo e de iliteracia tanto em Portugal como no Brasil. Seria de supor que, em democracia, tais rupturas radicais, referentes ao que de mais básico há numa nação – isto é, a sua forma de comunicação – e feitas à revelia do povo, da generalidade da população, já não fossem possíveis. Porém, e infelizmente, são… o que demonstra que, dos dois lados do Atlântico, a democracia não está, não é, propriamente desenvolvida e verdadeira.
A ver se nos entendemos de vez: não há qualquer obrigação, qualquer dever, de se proceder a regulares (grandes ou pequenas) alterações na ortografia. Se a maioria dos cidadãos as recusar, elas não se fazem. Ponto final. E não têm, não precisam, de dar qualquer justificação, qualquer explicação, da sua recusa; pelo contrário, quem tem de explicar e de convencer, correcta e legitimamente, são os «acordistas», e estes têm falhado rotundamente nessa tarefa. Por isso, e como já escrevi em outra ocasião aludindo ao «jargão» futebolístico, tão do agrado de brasileiros e de portugueses, eles preconizam a «técnica da força» (a imposição sob pena de penalização) em vez da «força da técnica»…
… E, ao contrário do que foi prometido, há pessoas em Portugal que estão mesmo a ser penalizadas, prejudicadas, por – ou se – não se submeterem ao AO90: principalmente, os alunos, os jovens em idade escolar. Que não estão a ser defendidos pelos seus professores. E o que estes poderiam e deveriam fazer era juntarem-se – nas suas escolas, nos seus agrupamentos, nos distritos, no país – e recusarem-se a aplicá-lo. Se forem ameaçados com sanções… que recorram aos serviços jurídicos dos respectivos sindicatos. Apelem à FENPROF, e esta talvez os leve a sério, porque à ILCAO não levou aquando de uma reunião que tivemos em 2014. Ganhem coragem! Após tantas greves, tantas manifestações, que os professores têm feito ao longo dos anos para defenderem os seus direitos e as suas regalias, que tal, finalmente, se mexerem em prol dos estudantes e do ensino (de qualidade)? E da cidadania e da democracia? E da liberdade?
Octávio dos Santos
Este texto saiu hoje, 22.03.16, na edição em papel do “Público”. Adicionei, a meu critério, “links” e fotografias. Imagem de topo: “Lula é titulado doutor honoris causa da Universidade de Coimbra” (notícias Terra.com.br).
Devido aos trágicos acontecimentos de hoje na Bélgica, atrasei o mais que pude esta publicação.
Compreendo e concordo, JP. E obrigado!
«Apelem à FENPROF, e esta talvez os leve a sério, porque à ILCAO não levou aquando de uma reunião que tivemos em 2014.»
Bem, não sei ao certo se a FENPROF não terá “levado a sério” a ILCAO, mas sei que de certeza pelo menos eu não levei a sério a FENPROF. Ilustrei esta minha impressão no “episódio” 28 da HMMC relatando a rapsódia da “baixa receptividade” por os impressos não desaparecerem da pilha.