Camões já defendia o AO90 (desde pequenino) – a criação de um discurso revisionista
Depois da exploração das maravilhas da oralidade, temos a reescrita da história, desta vez aqui: O português como língua de Camões é um mito (“Público”)
Há quem diga que Camões, como grande escritor que foi, conseguiu nacionalizar tendências importadas (visto por aí no Facebook).
Na Quarta-Feira foi publicado no jornal “Público” um curioso artigo onde se avança a hipótese de que Luís Vaz de Camões afinal pouco inovou na utilização da língua portuguesa. Talvez não tenha sido essa a preocupação do autor. Talvez a preocupação de Camões fosse deixar um testemunho da sua época aos vindouros, daí o seu desejo de declamar a obra a D. Sebastião. Mas afinal parece que «A preocupação de Camões foi, então, tudo o parece indicar, “iberizar o português”, de modo a que a língua funcionasse internacionalmente.»
Está aqui claramente enunciado um dos argumentos justificadores do AO90. A internacionalização da língua portuguesa passa pela assimilação de termos de outras latitudes para se tornar facilmente inteligível. E se já aconteceu no passado, se até um autor da envergadura de Camões o fez, porque é que não havemos nós hoje de o voltar a fazer desta vez com os termos brasileiros, ou seja desta vez vamos não “iberizar” mas “sul-americanizar” o português para nos tornarmos visíveis lá fora.
Portanto, uma “revisão” é não só possível como é até apresentada como indispensável para a salvaguarda da língua portuguesa. E tudo isto apresentado num jornal anti-acordista e por um reputado académico que já apresentou publicamente muitas reservas à implementação do AO. Maior prova de “credibilidade” a favor da tese da revisão do AO não pode haver.
Para que é que um punhado de inconformados ainda continuam a falar na revogação? Não vêem as evidências, não lêem os estudos mais recentes sobre a história da língua? Porque «Até aqui, o que faltou numa língua que tem sido intensamente escrutinada foi estudá-la numa perspectiva histórica, “comparando-a com a dos contemporâneos e a de épocas anteriores”…” é assim que se consegue perceber que a inovação está lá, “mas não é portuguesa». Portanto, procuram apresentar-se exemplos históricos para justificar o processo de revisionismo linguístico contemporâneo artificialmente induzido. Mais ainda: «Camões não está sozinho neste projecto linguístico, como lhe chama o investigador.” Que “encontrou no jesuíta Luís Fróis “um duplo linguístico de Camões”, porque o missionário também transpôs para português toda a riqueza latina que os castelhanos já usavam. Este homem, que sai de Lisboa aos 16 anos para nunca mais regressar depois de chegar à Ásia em 1548, é “o mais dotado ‘jornalista’ português no Oriente” e as suas cartas sobre a Índia e sobre o Japão foram durante décadas “lidas, relidas e disputadas logo que chegavam a Portugal”. Também ele, nitidamente, “investia numa ‘iberização’ da língua”. Estão os dois a fazer o mesmo em simultâneo. Apesar de terem percursos muito diferentes, ambos passam por Goa, que era por volta de meados do século XVI “um centro cultural fortíssimo”. “De certeza que absorvem um clima cultural, a que eu chamei ‘movida’, que já não havia em Portugal. Uma imensa liberdade criativa e mundana que contrasta com o controlo social da época de D. João III e que durou até à chegada da Inquisição.»
“Portanto”, a assimilação de novos termos como sinal de cosmopolitismo e de avanço civilizacional. Tal e qual como hoje nos é apresentado o AO90 e subsequentes projectos de revisão do mesmo.
«Todo este projecto linguístico de Camões e de Fróis, Fernando Venâncio tinha-o mostrado a Vasco Graça Moura, antes da morte do poeta e camonista, que ficou, descreve o professor universitário, “assombrado”.»
A partir desta quarta-feira o investigador vai com certeza testar a tese com outros camonistas. «A história do léxico português, diz, é provável que seja publicada já para o ano no Brasil.»
Olga Rodrigues
[O negrito foi acrescentado, não estava no original citado. Imagem copiada do “blog” Coisas de Outros Tempos]