O DILEMA DO MAZOMBO OU A DOENÇA DE NABUCO
por Carlos Fino
Facebook, 25.04.16
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Em dois anos de vivência nos Estados Unidos, no começo deste século, senti na pele aquilo a que o historiador e diplomata brasileiro Evaldo Cabral de Mello, reflectindo em Um Imenso Portugal sobre a obra de Joaquim Nabuco Minha Formação, designou por “dilema do mazombo”.
Mazombo era o vocábulo depreciativo pelo qual os portugueses nascidos no Reino, os reinóis, designavam os portugueses nascidos no Brasil. E estes, devido a essa circunstância, sentiam no espírito, como Nabuco o confessou, uma profunda dicotomia do sentimento pessoal de pertença, divididos que estavam entre os valores da América e os valores da Europa.
“Nós, brasileiros, e o mesmo se poderá dizer dos outros povos americanos, – escreveu aquele que foi o grande arauto da luta contra a escravatura – pertencemos à América pelo sentimento novo, flutuante do nosso espírito; e à Europa por suas camadas estratificadas”. Daí que, “desde que temos a menor cultura, começa o predomínio destas sobre aquele.”
E para acentuar ainda mais o dramatismo dessa dicotomia, concluía com esta fórmula magistral: “De um lado do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país”.
A este dilema daria mais tarde o iconoclasta modernista Mário de Andrade a designação sarcástica de “doença de Nabuco”.
Nascido em Portugal e aí formado, pessoalmente nunca tive dúvidas sobre o meu lugar de pertença; no entanto, vivendo nos Estados Unidos, deu para perceber com grande acuidade que essa dúvida se possa instalar no espírito daqueles que nascem de um dos lados do Atlântico, mas têm raízes no outro.
Ao contrário do velho continente, onde o peso do passado é dominante e na realidade está sempre presente, na América só há futuro e por isso, lá vivendo, tinha sempre falta do passado.
Ocorreram-me estas reflexões a propósito da passagem, dia 22, de mais um aniversário da chegada da frota de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1500, efeméride que os brasileiros não celebram nem nunca celebraram, porventura por o considerarem um acontecimento nefasto.
Dia: 26 de Abril, 2016
«O português que os pariu» [Carlos Fino, jornal “Tornado online”]
22 de Abril de 1500 – Frota de Cabral chega ao Brasil
Texto: Carlos Fino, em Brasília · 23 Abril, 2016
Ao contrário dos norte-americanos, que celebram sem complexos e com orgulho o dia de Colombo (12 de Outubro é feriado nos EUA) os brasileiros não celebram nem nunca celebraram o dia da descoberta do país pela frota de Pedro Álvares Cabral
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O desejo de forjarem a sua própria identidade como se fossem filhos de si próprios desde cedo levou o Brasil – os seus ideólogos e intérpretes – a menosprezar a herança portuguesa e quase tudo o que com ela se prende, a começar pela descoberta.
Questiona-se se ela foi acidental ou planeada, contesta-se que tenha sido Cabral o primeiro, sublinha-se que o território já era habitado. Depois, sublinha-se toda a herança negativa – matança dos índios, destruição da mata atlântica, escravatura, burocracia, corrupção.
Raramente se reconhece a herança positiva – o desbravamento do território, um vasto património arquitectónico hoje reconhecido como valor universal pela UNESCO, um país de dimensões continentais unido sob a mesma língua e um fundo cultural comum, uma convivência tolerante entre as diferentes etnias…
Na leitura do passado histórico, a regra seguida pelos brasileiros é esta – se foi mau, a culpa é dos portugueses; se foi bom, é porque já eram brasileiros, mesmo que tudo se tenha passado antes da independência, em 1822.
O ressentimento anti-português (transversal, mas cultivado mais à esquerda do que à direita) é tanto mais estranho quanto é certo que em 1822 – data da independência – não havia ainda propriamente uma nação brasileira formada. E a separação deu-se mais por responsabilidade portuguesa (a exigência das Cortes liberais de retirar ao Brasil o estatuto de reino que lhe havia sido reconhecido por D.João VI em 1815) do que por exigência brasileira.
Numa palavra – foi mais a intransigência dos portugueses de cá que levou os portugueses de lá a declararem a independência. Tivesse havido mais compreensão e talvez o Reino Unido tivesse podido prolongar-se por mais tempo para benefício mútuo.
Na célebre Semana de Arte Moderna de 1922 – que assinalou o primeiro centenário da independência – os modernistas lançaram a ideia do Brasil como país antropofágico – aquele que tudo devora e assimila, tornando-se mais forte do que os elementos exógenos que a ele chegaram ou o tentaram dominar.
A partir daí, o Brasil passou a revalorizar as suas raízes negras e índias, recalcando ou votando ao esquecimento as raízes portuguesas. “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval” dizia o Manifesto Antropófago, sublinhando – “Tupi, or not tupi – that is the question.”
É compreensível que queiram matar o pai. Mas o terrível drama com que os brasileiros se debatem é este – cada vez que se olham ao espelho, por mais que o queiram apagar ou negar, por mais que se pintem de preto ou de vermelho, sempre se defrontam com o português que os pariu.
Não seria mais sensato, então, admitirem-no francamente e reconciliarem-se de vez com a herança lusa?
É que esse recalcamento, mais do que um enriquecedor gesto antropofágico, acaba por ser – dada a profundidade das raízes que os portugueses aqui deixaram – um altamente prejudicial gesto autofágico.
[Transcrição integral de artigo com o título “BRASIL – PAÍS AUTOFÁGICO?”, da autoria do jornalista Carlos Fino, publicado no jornal “Tornado online” em 23.04.16. Destaques meus. Imagem de topo de Fundação Torino (Brasil).]