A saga continua. De rajada, quatro artigos de três autores diferentes, todos eles perorando sobre, a bem dizer, amendoins linguísticos: o primeiro artigo versava sobre “o sexo das palavras“, o segundo “assunto” foi a “linguagem politicamente correcta“, em terceiro lugar veio o “importantíssimo” tema dos barbarismos contaminando a Língua Portuguesa e agora aparece mais este, olha-m’este, o quarto é do Chico Louçã, esse ganda bacano.
Numa prosa pejada de expressões idiomáticas brasileiras volta ele à vaca fria, salvo seja, o Chico, manifestando-se — se bem que usando de elegantérrima ironia — chateadérrimo por o autor do primeiro artigo da presente rajada achar que as palavras são como os anjos, não têm sexo. Que sim, que têm, diz o Chico, e “prova” irrefutável disso é que até o Presidente da República (um reputadíssimo revolucionário, como toda a gente sabe) diz “portuguesas e portugueses” em vez de utilizar o exíguo, insuficiente, reaccionário e somítico apelativo “portugueses”. Tomai e embrulhai, seus sexistas, machistas, ó cambada.
Pois bem, pessoal (está bem assim, ó Chico?), parece-me que já chega de brincadeirinhas. Não vou agora estar aqui a tecer considerações sobre teorias da conspiração (pero que las hay, las hay) por causa do “timing” em que surgem mais estas “causas fracturantes”; não me consta que tais minudências, que não interessam nem ao menino Jesus, sirvam objectivamente para desviar as atenções do essencial, ou seja, para entreter o pagode.
Mas não deixa de ser um bocadinho estranho que ande por aí tanta gente à procura de sarna linguística para se coçar quando a Língua Portuguesa já tem cancro de pele, neoplasia ortográfica.
A Língua Portuguesa, santificada seja ela nas suas alturas
Francisco Louçã
———
Ouvi e não consegui evitar o espanto. O espanto, não, mesmo o escândalo, se não a indignação. Pois não é que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, e logo no parlamento, e logo na sessão solene do 25 de Abril, se permitiu dizer o seguinte: “É olhar para a forma como Portuguesas e Portugueses estão a viver a saída de uma crise, certamente uma das mais pesadas desde o 25 de Abril de 1974. Elas e eles sofreram sacrifícios, cortes, penalizações”. Como se não bastasse esta afronta, repetiu a tolice umas frases adiante: “Elas e eles foram os grandes vencedores sobre a crise”.
Estava eu esmagado pelo argumento imperioso dos críticos, essa tal de linguagem inclusiva é um disparate, o masculino plural sempre serviu e sempre há-de servir para incluir homens e mulheres, isto é um problema de gramática e não é de sociedade, está bem como está, o cavalheiro deixe-se de frescuras, a Língua Portuguesa é definitiva, e sai-se o Presidente com uma destas. De facto, com duas destas, ele disse e repetiu, um erro ainda se perdoa mas dois erros é uma estratégia.
Que a coisa foi longe demais, é bem evidente. Tudo começou com uma proposta bastante ingénua e menor (o Cartão de Cidadania, pelo amor da santa, era só isso), armou-se um fuzué tremendo, televisão, reportagem, crónicas, incêndios vários. E, claro, como estas coisas acontecem de onde menos se espera, tive direito a que me expliquem paternalmente que é tudo “treta” (Ferreira Fernandes até decidiu declarar-se ofendido e atirar-me com uma história estrambólica sobre uma candidata de burka algures no norte da Europa) e Nuno Pacheco, imperial, veio impor um definitivo “querem mesmo acabar com a linguagem ‘sexista’? Acabem com o Português”. De permeio, citação de Ricardo Araújo Pereira, a quem tiro sempre o chapéu, e de Miguel Esteves Cardoso, que aliás teve a elegância de vir deitar água na fervura e explicar, meio a brincar e meio a sério, que até gosta disso de usar “cidadania” para designar o homem e a mulher e os seus cartões. O assunto teria ficado arrumado, digo eu, se não fosse esta ligeira tergiversação do Esteves Cardoso, mas todas as guerras têm as suas baixas.
Eu não sabia que escolher a designação de “alunos” para uma turma de 25 mulheres e dois homens era uma imposição definitiva da Língua Portuguesa, abençoada seja ela. Ingenuidade minha, aprendi logo com a admoestação. Imaginava que me podia atrever a dizer “enfermeiras” ao tratar de uma profissão que tem, quantas serão: 95% de mulheres? Arrependi-me logo, estaria certamente a “acabar com o Português”.
Pensava eu que podia propor uma abordagem moderada, pragmática, porque me cansa repetir exaustivamente “professoras e professores”, ou “trabalhadoras e trabalhadores”, e por isso gostaria de usar termos inclusivos aqui e além, de modo a respeitar homens e mulheres e que a língua seja o que é, uma forma de comunicação fluida e consistente entre pessoas – nunca mais me atreverei a pensar nisso, é uma “treta”, “a mais tola e inútil das cruzadas” que até pode “acabar com o Português”.
Entendam portanto a minha indignação quando escutei o Presidente a dilacerar a Língua Portuguesa. Ele não leu a Gramática? Ele atreve-se a pronunciar “a mais tola e inútil das cruzadas”? Não ouviu os áugures que nos avisam da desgraça da Língua Pátria? Não sabe que as regras são eternas, que na Língua não se mexe, que o que é “Homem” há-de ser sempre homem e mulher e que o que é “homens” será tudo? Pensará ele que a Língua evolui e que os seus atrevimentos no discurso do 25 de Abril a vão ajudar a mudar, ou que a sociedade é que vai fazendo a língua e não o inverso? Não percebe o que é evidente? E não há impeachment num caso tão sinistro como este?