Novilíngua

VOLP1947Curioso texto, este, em que o autor diz coisas acertadíssimas sobre o “acordo ortográfico” sem jamais referir… o “acordo ortográfico”.

Atira-se à mais recente polémica “linguística”, digamos assim, mas bastaria ao leitor trocar mentalmente algumas das palavras e expressões-chave do arrazoado para que o dito se transformasse num (excelente) Manifesto contra o AO90.

Ao fim e ao cabo, o princípio basilar subjacente a todas as operações de engenharia sociolinguística é o mesmo: obrigar inocentes substantivos a ir à tropa, isto é, a entrar na guerra da paridade, ou amputar palavras consoante a “pronúncia culta” que se usa no Brasil, ambas as coisas não passam de mal disfarçadas armadilhas mentais, terreno ideologicamente minado, a estupidificação maciça (das massas) elevada ao estatuto de desígnio político.

Porque, de facto, “quem controla a linguagem controla a realidade”.

logo_shareSimbólica é a semântica e não a gramática

Nuno David

25/04/2016 – 07:10

A ideia da gramática não ser isenta de semântica não é nova. Contudo, a ideia de regular simbolicamente o significado da gramática legislando afigura-se questionável.

——————-

Alterar designações por recomendação legislativa em função da valorização moral de convenções gramaticais muda alguma coisa? A propósito do Cartão de Cidadão, em artigo no DN, Fernanda Câncio acha que sim porque “o simbólico é muito importante”. A ideia da gramática não ser isenta de semântica não é nova. Contudo, a ideia de regular simbolicamente o significado da gramática legislando afigura-se questionável. No domínio do simbólico, não seria preciso recordar que embora a Política e Economia sejam termos do género feminino, e o ‘orçamento’ e ‘estado do País’ do género masculino, verifica-se que a ‘Assembleia da República’ contém dois substantivos femininos e um artigo feminino, ainda que tenha mais deputados do que deputadas. Tivesse a AR tantas deputadas como deputados e teríamos talvez um país melhor, e não apenas simbolicamente melhor. Mas ninguém se lembraria de alterar a designação da AR por iniciativa legislativa, atendendo a uma suposta questão de equidade gramatical de género, para ‘Assembleia d@ Repúblico’.

Ora, sucede que legislar sobre o significado da gramática, no entendimento de que o masculino neutro não é, afinal, simbolicamente neutro, esquece que o simbólico sobrevive de representações, cuja natureza subjectiva está ligada à linguagem, e portanto à interpretação e intencionalidade. Senão vejamos: têm os termos de género gramatical feminino ‘cidadania’ no ‘cartão de cidadania’, e ‘identidade’ no ‘bilhete de identidade’, uma carga mais ou menos simbólica que o género masculino neutro ‘cidadão’? A verdade é que a simbologia que uma designação representa para um cidadão em função da valorização moral da gramática pode, para outro cidadão, representar algo diferente, e tal não deve ser regulado normativamente através de propostas legislativas particulares de partidos políticos.

Com efeito, se ontem foi um partido a propor alterar esta ou aquela designação por considerar que o masculino neutro da gramática não é, afinal, neutro, amanhã será outro a propor usar-se ‘Presidenta’ ou ‘Presidento’ em vez de ‘Presidente’; para depois de amanhã porventura propor, em prol da igualdade de género sexual, que devam existir na língua tantas palavras de género gramatical masculino como feminino, pelo que a emergência espontânea de novas palavras deve obedecer a posteriori a um critério normativo e correctivo gramatical de género, quiçá regulado por agências independentes nomeadas pela AR. Por uma questão simbólica? Simbólica de quê, de quem e para quem?

Sejamos claros: ao contrário do que se tem proclamado, a controvérsia que esta proposta suscitou não é de menos importância. Não pela proposta em si – certamente bem-intencionada – mas pelos riscos que poderia representar. A língua, como se costuma dizer, é do povo e dos escritores. Se a língua é o instrumento fundamental para fazer política e legislar, ela só o pode ser precisamente por não ser valorativamente neutra e por não pertencer aos políticos, evitando-se que a gramática seja objecto de alterações em função de valorizações morais das suas regras por via de iniciativas legislativas particularizadas. Não por falta de tempo dos parlamentares, ou por terem tarefas mais prioritárias, mas apenas porque não deve ser feito por eles.

Nuno David
Professor universitário

“Público, 25.04.16