Bom, se calhar devo mesmo reconhecer que estou redondamente enganado: como toda a gente, com a excepção de uma única pessoa, que sou eu próprio, jura a pés juntos que “o AO90 não está em vigor”, pois então quem diabo sou eu para aborrecer toda a gente!
Que aquela porcaria é ilegal, pois claro, também acho, a coisa é pacífica e temos quanto a isso consenso geral, para não dizer opinião unânime.
Porém, macacos me mordam, raio de feitio, lá esse número de proclamar alto e bom som que o aleijão não está em vigor quando o vemos por todo o lado, qual cancro linguístico em plena fase de metastização acelerada, bem, essa (re)negação persistente da realidade em função de tecnicismos jurídicos é que me parece um bocadinho, como direi, inútil; até porque todos os argumentos para sustentar a tese são desde há muito do conhecimento público e não foi por isso que desde pelo menos 2012 houve a mais ínfima regressão da neoplasia ortográfica — muito pelo contrário.
Mas pronto, siga, juntemo-nos ao coro, afinemos pelo mesmo diapasão, se de alguma forma posso contribuir para o índice de felicidade geral, ainda que mui modestamente, de acordo com a minha insignificante posição na base da pirâmide social, então está bem, olha, também digo, se nosso bom povo fica satisfeito por “escutar” apenas mais um eco dessa tão insondável quanto misteriosa verdade, pois então cá vai disto: o AO90 não está em vigor.
Uff, caramba, agora que me aliviei de tão insólita teimosia, até parece que já me sinto melhor. Esplêndido. Mas que bom.
Vou ali dar milho aos peixes.
A oitava revisão
NUNO PACHECO – 08/04/2016 – 06:56
Falar deste tema já é quase como fazer sermões aos peixes, mas enfim… Lembram-se do Alien? Infiltrou-se numa nave espacial com sete tripulantes, número bíblico, e aí foi fazendo estragos e liquidando pessoas. Mas era um pequeno monstro num filme, não era para levar a sério. Ora a nossa Constituição já teve o seu Alien. Como no outro, ninguém deu por ele, nem mesmo os que ameaçam que na Constituição não se mexe nem numa vírgula. Aos 40 anos, talvez já com cabelos brancos a despontar, foi cirurgicamente despojada de umas centenas de letras, e em duas edições: uma mais gordinha e outra liliputiana. Alguém se indignou, peixes? Não. Toda a gente achou normal. Aliás, na versão para usar com lupa até vem escrito: “Nota do editor: o texto da Constituição foi alterado para a atual grafia”. Quem é o editor? A Assembleia da República! A mesma que precisa de uma maioria qualificada de dois terços para alterar uma só vírgula no texto constitucional. Já viram que belo país, peixes? Afinal pode-se mexer na Constituição! Não é preciso governos, deputados, assembleias ou decretos. Basta um “corretor” “atualizado”! Portanto, alterem lá o que vem na capa: em vez de “sétima revisão”, como foi impresso, ponham “oitava revisão”. Clandestina, como o Alien.
Há-de haver, claro, quem ache isto perfeitamente normal. Mas um livro lançado ontem, em Lisboa, da autoria do embaixador Carlos Fernandes, veio lançar mais umas achas para esta fogueira: e se tudo isto for inconstitucional? Resumindo: a Convenção Ortográfica de 1945 e o pequeno aditamento de 1973 foram sancionados por decretos-lei. Ora o AO90, que acaba de subtrair letras ao texto constitucional, nunca teve decretos ou decretos-lei a sancioná-lo. Só resoluções (que não são leis) e um decreto do Presidente (que “não governa nem legisla”, como muito bem lembrou há dias o ex-PM Passos Coelho). Parece-vos isto bem, peixes? Não? Então reúnam os cardumes e ponham em sentido os tubarões. Nunca é demasiado tarde.
Alterem lá o que vem na capa: em vez de “sétima revisão”, como foi impresso, ponham “oitava revisão”. Clandestina, como o Alien.
[“Público, 08.04.16. Acrescentei “links”.]