«E havemos de morrer com este desgosto? Esta língua matricial tão bonita há-de continuar a ser violada pelo inimigo? Tivessem estes bárbaros lido “Le Silence de la Mer”, de Vercors, saberiam que há legados que é preciso acarinhar. As palavras de uma língua são pequenas hastes de um ninho, estão interligadas, entretecem-se, criam laços, acalentam. Ter vivido num outro país e reconhecê-las num qualquer corredor, numa rua estranha, escrita em paredes, sussurrada em igreja com volutas de incenso ou gritada em novelos de fúria é voltar a casa. É já estar em casa. É a casa acolher-nos.»
Ou, como se dizia dantes, regressar a penates.
Neste 1.º de Abril, data muita adequadamente popularizada como “Dia das Mentiras”, não se completam quaisquer tempos certos, anos ou meses, não há nisto efeméride, mas já passou ao menos o tempo suficiente desde aquele outro dia em que uma mentira lançada de véspera aqui me trouxe, de volta a casa.
Por este facto já tinha agradecido e tornado a agradecer mas, como sabemos, os agradecimentos nunca são demais. De mais a mais quando são mais do que merecidos. Devo, portanto, agradecer novamente, aos outros, pela liberdade que fizeram a fineza de me conceder, por este abençoado sossego que é, tão simplesmente, ter um blog pessoal, esta leveza de espírito que é poder a gente escrever quando e como quiser, usando apenas a primeira pessoa do singular em vez de plurais pomposos, majestáticos pronomes pessoais.
Desde aquela data, que em breve dobrará o cabo do primeiro aniversário, posso dizer tudo e mais alguma coisa, sem espartilhos mentais, sem auto-censura, sem prudentes reservas. Portanto, agora sim, já me é possível “falar” apenas por mim mesmo, livre de quaisquer responsabilidades “institucionais”, o que equivale a dizer aquilo que, por vezes, mais ninguém se atreve a sequer… pensar.
Uma velha aspiração, uma ânsia que, devo confessar, me compeliu durante muito tempo a invejar todos aqueles que sempre puderam dar-se ao luxo de emitir apenas e somente a sua própria opinião. Há por aí alguns destes “livre-pensadores“, digamos assim, à maneira do século XIX, que nunca lhes doam os dedos (nem as meninges) por isso, e a essa livre comunidade me junto agora alegremente, todos unidos — apesar de algumas possíveis divergências acessórias — numa Causa (por fim) ideal, instintivamente solidária: a luta contra o pensamento único, a ideia-feita, o lugar-comum; portanto, contra a intoxicação e a mentira. Não é coisa pouca…
Porque, sejamos claros, os opinadores da ordem, os “fazedores de opinião” — quantas vezes pagos à peça — nunca vão ao fulcro da questão; evitam-no, aliás, utilizando para o efeito um imenso arsenal de manobras de diversão.
E isto sucede, por maioria de razões, em tudo aquilo que diz respeito ao “acordo ortográfico”. Tema de eleição para o establishment, ainda para mais, visto que a oposição ao dito “acordo” já dura há longos anos, persiste, resiste em alguns espíritos e ao menos nestes não dá sinais de vir a enfraquecer.
Sejamos justos, reconheçamos que os tais “fazedores de opinião” costumam operar verdadeiros milagres nas áreas mais diversas. Prova disto é o facto, facilmente comprovável através das inúmeras “entrevistas de rua” com que somos sistematicamente bombardeados, de o chamado “homem da rua” (ou o ainda mais conhecido “popular”) reproduzir alegre e militantemente toda e qualquer imbecilidade que lhe impingirem.
Nos dias que vão correndo, a “opinião pública” tuga (mainstream) não é mais do que simples caixa de ressonância das patranhas que os profissionais da mentira divulgam com método e por sistema. Como ilustrações objectivas de como está gordurosamente oleado o método e de como espectacularmente funciona o sistema podemos apontar, por exemplo, algumas das referidas afirmações televisionadas. A gente ouve e pasma: que “devia haver mais descidas do preço da gasolina” (ah, mas que bela ideia, excelente, nunca tal me ocorrera) ou que “acho bem as multas, as brigadas de trânsito e as operações stop dão muito jeito, devia haver mais, é uma questão de segurança” (ora, ora, pois claro, isso da “caça à multa” não passa de um mito urbano).
E se isto é assim com tão triviais coisas como os aumentos dos combustíveis ou as multas de trânsito a granel, então fácil será, pelo mesmo processo de intoxicação da opinião pública, constatar com horror a passividade geral, a bovina aceitação que nosso bom povo português manifesta em relação ao “acordo ortográfico”: não há novidade alguma neste “fenómeno”, as pessoas engolem facilmente tudo aquilo que a estatal máquina de propaganda lhes enfia goela abaixo.
Evidentemente, sendo pagos à peça os fazedores de opinião (a não ser que sejam “do quadro”, porque nesse caso são pagos ao mês), a respectiva entidade patronal (o referido statu quo, isto é, o Estado) exige resultados palpáveis, salvo seja, aos seus empregados e avençados; caso contrário, despede-os (ou, mais vulgarmente, chuta-os para cima, arranja-lhes algures um tacho para que se calem de uma vez por todas) e contrata outros para o efeito, escolhidos de entre os filhos, sobrinhos e afilhados dos membros da colectividade partidária que na ocasião detiver o poder político-administrativo.
A nossa Constituição, à semelhança do que sucede em outras “democracias ocidentais”, contém um artigo sobre a pública “liberdade de expressão e informação”, o que se designa genericamente por “liberdade de opinião”. Mas nem no Texto Fundamental nem em qualquer outro nacional escrito está prevista a mais ínfima restrição a que a opinião pública seja formatada pelo establishment. E isto quanto à “opinião”, porque quanto à parte da sua expressão (ou seja, da “informação”), no que toca a liberdades, a coisa ainda vai pior: atente-se no que diz a legislação avulsa ou pontual sobre o assunto, as diversas, miudinhas, inúmeras restrições a essas mesmas “liberdades”, por regra e definição exaradas a pedido, ou seja, à medida dos interesses particulares de certa casta, deste ou daquele lobby específico.
A pretexto de “questões de segurança interna” ou até mesmo sem alegar pretexto algum, que já nem é preciso disfarçar, o statu quo vigente impõe uma política de pensamento único com fundamento numa “lógica” absolutamente impecável: os cidadãos são livres de pensar aquilo que entenderem, desde que a expressão dos seus pensamentos esteja previamente autorizada, isto é, na condição de que a sua opinião coincida na íntegra com aquilo que os que podem (e mandam) consideram ser legítimo exprimir.
Isto tem sido assim, de forma geral, desde há longos anos, e com particular violência quanto à chamada “questão ortográfica”. Os tempos que se avizinham serão ainda mais difíceis, visto que a nossa longa luta pela preservação do património identitário nacional passará doravante — muito em breve, porque essa outra máquina trituradora já foi posta em movimento — a um novo e ainda mais perigoso patamar. Além da luta contra o AO90 propriamente dito, uma outra frente de combate se vislumbra já no horizonte: a “revisão” daquele mesmo absurdo.
Não posso adivinhar quantos dos antigos combatentes se disporão a travar esta nova batalha, que será porventura a mais dura de todas, a mais difícil e até a mais dolorosa, porque inevitavelmente teremos de lutar contra algumas pessoas que dantes estiveram connosco mas que entretanto, por algum motivo, se mudaram para aquele lado. Não carece de adivinhação, é claro, que pelo menos um desses antigos combatentes cá estará, deste lado, o mesmo de sempre, pronto para o que der e vier.
Por isso, em suma e voltando ao início, foi-me difícil e levou o seu tempo até conseguir despir o “hábito” institucional (por assim dizer). É bom, é excelente, ah, caramba, que delícia de sensação, não há nada como voltar a gente para a sua modesta, porém honrada casinha. Aqui posso dedicar-me de novo, livre como um simples operário da palavra, a ao menos burilar, afiar, brandir o meu prefixo de negação favorito, “des”: descomplicar o que é simples, desfazer equívocos, desmentir falácias, desmitificar ilusões, desmontar patranhas.
Dito isto, com vossa licença, cá vou de novo para a bancada de trabalho, que estão ali as ferramentas a rir-se para mim.
Até à vista.
A “casa dentro de casa”. De longe, a mais incrível “workstation” que já vi na vida. Foi aqui que a frase “concentrado no trabalho” ganhou todo um novo sentido. :^)
É espantoso como a tua enorme capacidade de luta e de trabalho cabe dentro de um espaço tão pequeno. Com televisão, computadores, secretárias e um telefone, ali se cumpriram e continuam a cumprir, milhares de horas de trabalho de pesquisa, investigação, estudo, tradução, crítica, comentário, edição web, e mais um longo etc. que não cabe nesta pequena nota.
A parte do “comentário”, como dizes, tem vindo a aumentar — e isso, vá lá, não há espinhos sem rosas, foi das poucas coisas boas que nos trouxe o fim da ILC.
…e quanto à “revisão”, cá estaremos na luta — a menos que se trate de “revisão” no sentido de “rever aquela porcaria toda de ponta a ponta e acabar com ela”. De contrário, toda a gente sabe que mexer na porcaria só faz aumentar o mau cheiro.
Abraço!
Um abraço, companheiro.
Consigo imaginar, do que conheço dessa veia incansável e determinada que é só tua, do que será capaz esse prefixo, agora livre de amarras institucionais e morais – que também as tens.
Tal como o camarada Rui, digo “presente”! Cá estou e estarei, à minha maneira pouco ortodoxa e algo desbragada, para o que der e contra quem vier, que o tempo urge e o empenho não diminui.
Em frente e em força, camarada João Pedro Graça!