Galiza: ontem e hoje de um genocídio linguístico
Bento Seivane Tápia
À memória de Luís Pouparinha Mourelhe, que nos deixou
demasiado cedo e que também amava e defendia a Língua
e a Cultura da sua terra natal, a Galiza.
Introdução
Um idioma não é simplesmente um mero instrumento utilitário para a comunicação entre os indivíduos de um povo dado e num momento concreto; é o alicerce e veículo essencial do seu pensamento, criado e forjado através dos séculos por esse mesmo povo, que progressivamente o foi enriquecendo ao trasladar às palavras as suas emoções e sentimentos, alegrias e tristezas… além de todo o acervo de conhecimentos científicos, racionais ou intuitivos sobre o Mundo, a Vida, a Natureza, a possibilidade de existência de uma dimensão transcendental do Ser Humano, etc. E portanto, um grande e excelso monumento cuja construção se fez durante muitas gerações e cuja própria dinâmica exige continuamente um labor de edificação: consiste este em acrescentar ao monumento, sem destruir nem os seus cimentes nem a sua personalidade, todo o património léxico necessário para reflectir as novas realidades emanadas das da evolução dinâmica da sociedade, as quais demandam um esforço de criação contínua. Só quando tal criação se produz sem interferências alheias tem uma língua dada garantias de prosperidade e futuro. Em troca, se um idioma não se revivifica regularmente, se não evoluciona orgânica e naturalmente crescendo e anovando-se com o decorrer dos tempos, então esse idioma fossiliza-se, definha e perde vigor, o seu destino será o de um organismo enfermo, cujo enfraquecimento progressivo só pode conduzi-lo à perda de defesas face a outros organismos (línguas) mais fortes e. finalmente, à sua morte e substituição por uma língua diferente, mais forte e poderosa. Sobejam exemplos ao longo dos tempos, alguns bem recentes e dentro do âmbito da Latinidade, como o dalmático, cujo último falante, António Udina, morreu em 1908.
Sob este ponto de vista, o valor de um idioma não depende do seu número quantitativo de falantes: por cima dessa visão utilitária, que pretende traduzir a realidade a termos matematizáveis e mensuráveis, deve prevalecer uma outra: o valor espiritual, cultural e histórico das línguas como tesouro insubstituível de um povo cuja perda é irreversível e irrecuperável. Não falamos aqui de “povo” no senso moderno, superficial, demagógico e pseudo-democrático da palavra: aquele que o pretende fazer sinónimo de massa inerte, facilmente manipulável, sobretudo para desconsciencializá-lo e despossuí-lo das suas tradições, raízes, cultura e sistema de valores. Essa é a praxe corrente nos imperialismos modernos de feição e aparência democráticas, muito mais terríveis na sua subtilidade agressiva e destrutora dos povos culturas que os imperialismos do passado: estes, pelo menos, não tinham nas suas mãos os meios agressores e de controlo da mente humana que o progresso cientifico e tecnológico actual fornece, conducentes à uniformização e homogeneização crescentes dos valores, condutas e sistemas de pensamento de todos os povos do mundo.
Pensamos que só tendo em mente estas premissas poderemos compreender melhor as dimensões do problema linguístico e cultural da Galiza, berço da nação e da pátria portuguesas; esta Terra-Mãe está hoje prostituída e humilhada por um poder alheio que tem a cumplicidade activa do poder autonómico galego, mero esbirro dos desígnios do primeiro. Até tal ponto é dramática a situação que se continuarem as coisas assim, como iremos vendo neste ensaio, talvez só restem duas ou três gerações de vida à nossa Língua e Cultura ali onde elas nasceram. A tal situação não e estranha a inconsciente e passiva colaboração de muitos galegos, ignorantes da história do seu povo e do valor do seu idioma, mercê dos efeitos de um ensino publico cujo propósito tem sido sempre perpetuar tal desconhecimento. Lembremos aqui aquelas palavras de Castelão no seu livro “Sempre en Galiza”: “Os galegos, tão afeitos a serem educados na ignorância de si próprios”. E quem ignora corre o risco de desprezar o verdadeiro e profundo valor de aquilo que ignora; e essa tem sido a atitude inculcada geração após geração em todos os galegos no que diz respeito aos nossos sinais de identidade, visando a nossa absorção e e desaparecimento como povo.
A tarefa de reparar os desperfeitos que tantos séculos de abandono tem produzido na identidade e no Ser mais profundo da Galiza é gigantesca e ao mesmo tempo urgente: a situação da nossa Língua comum é cada dia mais preocupante, e do que agora se faça dependerá que num futuro não muito longínquo a balança se incline a favor de uma Galiza dona da sua própria cultura e reintegrada ao tronco comum galaico-português, ou de uma outra que já não deveríamos chamar Galiza, por ser uma terra espanholizada e que teria perdido o seu acervo linguístico e cultural próprios.
Algumas considerações mais sobre os termos utilizados neste ensaio: nele falaremos de galego e português como conceitos sinónimos no que diz respeito a língua. Os dois são legítimos: o primeiro por fazer referência à Terra onde o nosso idioma nasceu, o segundo por aludir ao país que a fez sua e a espalhou pelo mundo adiante, e que é o termo pelo que universalmente se conhece a nossa Língua comum. Também poderemos utilizar com o mesmo valor o vocábulo galego-português, que integra os dois anteriores-, em todo o caso, com a utilização como sinónimos de ambos os termos também queremos combater uma ideia muito arreigada em Galiza e Portugal, especialmente aliciada na primeira pelo poder político-cultural por servir aos seus propósitos: a de que o galego e português são duas línguas diferentes. Os critérios em que esse poder, antigalego na sua essência, baseia tais afirmações são inadmissíveis sob um ponto de vista científico e têm sido negados desde sempre pela romanística internacional, e, por suposto, são critérios que evitam muito escrupulosamente aplicar à língua castelhana para salvaguardar a sua “esencial unidad por encima de sus diferentes variantes y realizaciones”. Mas, essa mesma unidade é-nos negada aos utentes de galego-português na Galiza com umas justificações completamente opostas, apesar de as diferentes variantes e realizações do nosso sistema linguístico diferirem entre si muito menos que as do castelhano ou espanhol, termos que são utilizados como sinónimos sem qualquer problema.
Também é possível encontrar em textos galegos os vocábulos reintegracionista ou lusista. Designam os dois os defensores, na Galiza, da ideia de utilizar o código ortográfico do português actual para a escrita do galego, em harmonia com a sua própria história e etimologia. O segundo dos termos é utilizado com carácter pejorativo na Galiza por bastantes inimigos da nossa cultura: com isso ao mesmo tempo, exprimem o seu menosprezo e ódio contra tudo aquilo que acarreta em si a ideia de Portugal, sinónimo para eles de atraso, pobreza ou incultura. Com isto não pretendemos dizer que seja uma palavra a evitar, mas bem ao contrário, deveríamos usá-la ainda com mais força, energia e orgulho.
Também pode ser possível encontrar a palavra castrapo. Com ela aludimos à forma original do galego imposta à força na Galiza, sem ter em conta a opinião de destacados vultos da cultura e do pensamento da Galiza, do passado e do presente, e que pretende incorporar o Galego no sistema ortográfico espanhol. Além da castelhanização ortográfica o dito castrapo inclui no seu léxico abundantes arcaísmos, dialectalismos, vulgarismos (do Galego e do castelhano da Galiza) e castelhanismos, todos eles carentes de todo possível rendimento se queremos formar uma língua culta, científica e moderna, apta para todas as possibilidades de expressão.
Fotografia: Viana do Bolo, Ourense – Galiza. De Mario Sánchez – originally posted to Flickr as Viana do Bolo – desde el mirador de San Cibrao, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7612819.
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII