Galiza: ontem e hoje de um genocídio linguístico – II [por Bento S. Tápia]

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Breve história da nossa língua na Galiza

Entender e perceber todas as dimensões da situação que hoje atravessa o português na Galiza exige um conhecimento sequer sucinto, da sua história. Recuemos pois ao século V, quando Roma, enfraquecida, abandona os seus domínios no leste peninsular. Da desagregação do Latim falado surgiu o idioma que hoje, com as suas variantes a todo o longo da faixa atlântica peninsular, ainda nos une aos que nela vivemos a jeito de vínculo sagrado pela história. Nessa Língua deu Galiza à cultura europeia medieval a grande achega da poesia lírica e satírica dos cancioneiros: e, dentro da primeira delas, está esse tesouro originalíssimo das Cantigas de Amigo, postas sempre em boca de uma mulher e cheias da emoção e delicadeza-tão condizentes com a alma galega. São temas e estilos bem diferentes aos dos coevos cantares de gesta da épica castelhana, testemunhas de um povo e um carácter rudes e belicosos, alheios ao afecto, lirismo e ternura presentes na alma galega. Tanto é assim que até no século XIII, quando já na Galiza o vigor da sua cultura declinava pela perda da sua independência política e a sua vinculação a Castela, o próprio rei Afonso X, o Sábio (em cujo reinado se cria a prosa literária e científica castelhana em detrimento do galego), fará a última grande contribuição à lírica da nossa Língua: a recompilação das Cantigas de Santa Maria, de algumas das quais é possível fosse autor, compêndio da lírica sacra galego-portuguesa e, paradoxalmente, momento a partir do qual começa a agonia literária do nosso Idioma na Galiza.

Incorporada a Castela politicamente, Galiza começou desde então o seu ocaso como nação: grandemente prejudicada pelos conflitos civis do reino castelhano, nos que a sua nobreza escolhe sistematicamente o bando perdedor, é definitiva e brutalmente submetida pelos Reis Católicos no século XV; perde então Galiza a sua nobreza e clero autóctones (desterrados a Castela ou mortos como retaliação ao apoio que deram a Joana no conflito sucessório). Estas classes, tão influentes na sociedade, vão ser substituídas por nobreza e clero castelhanos, dando passo definitivo a uma realidade que desde então até hoje será omnipresente na Galiza: o facto de a direcção dos seus destinos estar nas mãos de uma camada dirigente castelhana ou muito fortemente castelhanizada, com as nefastas consequências que disso derivam para a conservação da identidade de Galiza como nação.

Com o castelhano como língua única nos planos oficial e cultural, o português na Galiza vai decaindo e definhando a literatura autóctone, sendo os últimos textos tabeliónicos redigidos em língua galega de começos do século XVI e já muito deturpados quanto à sua correcção, por estarem juncados de castelhanismos. Até começos do século XIX ficará a nossa Língua na Galiza ágrafa, reduzida à pura oralidade e aos ambientes humildes de camponeses e marinheiros; banido da esfera da cultura e do Ensino, ocupada pelo castelhano que é o único idioma que utilizam as classes acomodadas ricas e cultas, vai a pouco e pouco castelhanizando-se, empobrecendo-se, avulgarando-se e hiperdialectalizando-se. A total ausência de usos cultos faz dele um corpo cada vez mais enfraquecido e necessitado de urgente restauração. Mas, a indiferença face a esta situação era geral, só sendo honrosa excepção a figura dos dois ilustrados a finais do século XVIII: os Padres Sarmiento e Feijoo. Eles estudaram a situação do galego, propondo soluções que hoje, após duzentos anos, ainda não foram levadas à prática, v. g. a utilização do galego em todos os níveis do Ensino como língua veicular ou a superação do auto-ódio dos galegofalantes, em alusão ao complexo de culpa e inferioridade que tinham (e têm) os galegos por se exprimirem no seu Idioma.

Desde começos do século XIX e até 1936 tem lugar uma recuperação literária da nossa Língua na Galiza; no decorrer destes anos conhece duas realidades opostas: de uma parte, uma progressiva preocupação, valorização e interesse pelo idioma próprio de Galiza por parte de uma limitada minoria sensível e consciente; da outra, o crescente processo de castelhanização social e mental cujos factores serão: a imigração das camadas dirigentes, sistematicamente não galegas, e a sua influência social pelo afã de imitação dos seus usos e costumes como o melhor meio de ascenso social; o surgimento, dentro dessa camada, de uma burguesia assim mesmo não galega; a forte emigração de galegos ao exterior, nomeadamente a países da América de idioma oficial espanhol (Cuba, Argentina), que não só provocou perda de falantes como também foi responsável pela assimilação do galego a uma língua inútil e inapta para a vida diária; a expansão do Ensino do espanhol e em espanhol, muito limitado até então pela sua não obrigatoriedade, a acidentada orografia e a muito dispersa distribuição da população da Galiza.

Questão particularmente importante para o assunto que nos ocupa é a ortografia utilizada pelos escritores galegos no século passado: tencionando escrever numa língua até então ágrafa e aliterária na Galiza, e desconhecedores da sua tradição medieval, escreveram tomando como modelo o único sistema ortográfico e morfológico que conhecem, o do castelhano em que foram alfabetizados. Não repararam a maioria para nada no sistema que lhes oferecia o português e, além disso, o idioma que empregam está prenhe de todas as eivas derivadas de tantos séculos de abandono: castelhanismos, vulgarismos, anarquia ortográfica muitas vezes num mesmo autor… O exemplo de Rosália de Castro é bem evidente para demonstrar esta realidade.

Uma excepção a esta tendência é a figura do poeta Eduardo Pondal, de ascendência fidalga, o qual recebera uma esmerada educação que lhe permitia dominar idiomas clássicos e modernos. A sua poesia tem um carácter combativo e visa a restauração da dignidade de Galiza tirando da sua submissão a um povo de escravos; é uma poesia que já apresenta um idioma mais culto e cuidado, selecto e depurado em comparação com o dos seus contemporâneos. Na sua poesia são frequentes os apelos à irmandade entre Galiza e Portugal, a qual permitiria recuperar a unidade perdida e libertar aos demais povos ibéricos do jugo de Castela. Galego e Português são considerados a mesma Língua nos seus versos, e ele já utilizava nos seus escritos uma ortografia etimológica aproximada do português padrão, usando por exemplo as letras “j” e “g” etimológicos, e não o “x” que outros autores escolhiam em base a um critério foneticista.

No primeiro terço do século XX florescem na Galiza os movimentos culturais que visam a defesa da língua e a cultura galegas: Irmandades da Fala, Geração Nós…, também se cria, com o apoio dos emigrantes galegos em Cuba, a Real Academia Galega, cujo primeiro presidente foi Manuel Murguia, esposo de Rosália de Castro e defensor da ideia da unidade linguística entre Galiza e Portugal. Um dos seus propósitos, nunca culminado, era a fixação de um código ortográfico para a escrita do galego pelos galegos. Na sequência desta procura, é conveniente lembrar que com o novo século aumentaram os estudos linguísticos a nível internacional e já se divulgara entre as camadas galeguistas e consciencializadas o conhecimento da passada tradição escrita do seu idioma, daí que entre elas se sinta a necessidade de aproximação ortográfica ao português como norma culta do galego. Com esses critérios estava elaborado o primeiro Dicionário do Idioma Galego, feito pela Real Academia Galega, que ficou inacabado (1913-1928).

Sem dúvida que o destino da nossa Língua na Galiza teria sido a sua incorporação ao registo ortográfico português, solucionando-se assim este grande problema que arrasta desde há séculos; essa era a atitude de todos os mestres do galeguismo naquela altura, cuja enumeração seria interminável: Vicente Risco, Castelão, João Vicente Viqueira, António Vilar Ponte, Evaristo Corrêa Calderão… mas a sublevação militar franquista de 1936 e a consequente guerra civil irão supor uma rotura brutal deste processo. O novo regime, igual que os seus predecessores, era jacobino e feroz inimigo das nacionalidades do estado espanhol, e unia a isso a brutalidade própria de uma ditadura militar surgida de uma guerra civil, brutalidade traduzida na condenação a morte de alguns dos vultos que mais se tinham significado nos anos anteriores na arena política e cultural na defesa da identidade e língua galegas; podemos mencionar, a modo de exemplos,a Alexandre Bóveda, um dos mais destacados redactores do Estatuto de Autonomia de Galiza de 1936; a Ângelo Casal, destacado editor e Presidente da Câmara de Santiago de Compostela: Jaime Quintanilha Martínez, médico e cirurgião que presidia a Câmara de Ferrol; Roberto Blanco Torres, jornalista e poeta…a listagem seria muito longa e é significativa do propósito de eliminar fisicamente aquela elite espiritual e cultural que trabalhava pela restauração da identidade de Galiza. Legalmente, o regime militar franquista relegou às catacumbas e condenou à morte por extinção a nossa Língua na Galiza (bem como às demais línguas não castelhanas do estado); o seu emprego escrito na escola, na administração pública ou nos meios de comunicação foi banido daí em diante, e a sua utilização oral exemplo de barbárie e mau-gosto, quando não de “traição à pátria” ou atitude anticristã; lembremos lemas ou expressões habituais da propaganda da época como o de “hable castellano, sea patriota y no bárbaro” ou “hable en cristiano”, esta última ouvida por muitos galegofalantes quando se dirigiam oralmente no seu idioma a representantes da Igreja ou da Administração civil (da militar, por razões óbvias, é melhor nem falar).

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Quando, muito timidamente, se recupera pelos inícios dos anos 50 o uso escrito do galego retrocede-se bruscamente a um registo vulgar, bastante semelhante ao dos inícios da recuperação literária no século XIX. A questão da incorporação ao sistema ortográfico do português ficará relegada a um segundo plano, sendo considerada secundária salvo raras excepções. A tarefa que se sentia como mais imediata era salvar o destino e a vida do próprio idioma, cuja existência estava ameaçada de morte pela generalização do ensino em espanhol, o abandono do mundo rural e a forte emigração às cidades (onde dominava e domina o espanhol) ou a fora de Galiza, a invasão dos meios de comunicação social em castelhano…, factos estes que tinham um cada vez mais alarmante reflexo na crescente educação dos filhos em castelhano abandonando o galego por parte das camadas sociais até então fiéis ao idioma, imitando a conduta das classes abastadas e socialmente dominantes na crença de que isso ajudaria aos seus filhos a ascender nos planos social e económico, tarefa na que a Língua própria de Galiza era considerada um estorvo. Com o avanço dos anos, a situação irá sendo cada vez mais dramática e o futuro do idioma cada vez mais preocupante e hipotecado aos olhos dos galegos defensores da identidade nacional da sua terra.


Fotografia de topo: Boimorto, Coruña – Galiza. De José Antonio Gil Martínez – originally posted to Flickr as Iglesia de Santa María de Sendelle, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=9483768
Ilustração copiada do “blog” Fundación Gaspar Torrente.

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Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII

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