Despetalando a flor do Lácio
João Ubaldo Ribeiro
ABL – Academia Brasileira de Letras
O Globo (RJ) 04/01/2009
Despetalando está correto, tenho praticamente certeza. Não acredito que um filólogo desalmado tenha resolvido que aí vai hífen. Não, não vai, não é des-petalar. “Flor” e “Lácio” continuam, uma sem acento, outro com acento. Portanto, cem por .cento de acerto em meu primeiro título na ortografia nova, brilhei mais uma vez. Isso, contudo, não me aplaca o nervosismo. Deve ser a idade, porque já encarei algumas reformas ortográficas nesta curta existência e me saí satisfatoriamente, mesmo no tempo em que a gente tinha que grafar “tôda” com circunflexo, para distinguir de “toda”, que ninguém sabia o que era, embora, no ver de alguns, fosse uma ave amazônica pouco sociável, ou, segundo outros, uma exortação obscena de origem xavante. Acho que esse ponto nunca será esclarecido (de qualquer forma, cartas de esclarecimento para o editor, por caridade) e constituirá mais uma das graves interrogações, sem cujas respostas minha geração deixará este mundo.
Quando me peguei lendo, a maior parte da livrama de meu pai era na orthographia antiga e havia livros portugueses com suas próprias normas Apesar de leitor fominha que, mesmo sem entender nada, traçava o que aparecesse, levei semanas para compreender que “augmentar” era “aumentar”. Mas me acostumei e sempre transitei bem nessa área, para alguma coisa eu tinha de levar jeito. Chefiei redação no tempo da abolição do acento diferencial e dedicava grande parte de meu tempo a explicar que, de então em diante, não se escreveria “voce”, mas “você” mesmo, como sempre. Foi difícil, muito mais difícil do que qualquer um imaginaria, tratando-se de gente instruída e, em muitos casos, talentosa.
Uma amiga minha sustenta que tudo vem de trauma da infância e eu tendo a concordar com ela. Sei de traumas profundos, carregados por amigos meus sob o jugo — o que, graças a Deus, não foi meu caso — de professores de português dogmáticos e caturras, que entupiam todos de regras quase impenetráveis e só podiam com isso instilar ódio e temor pela língua e pelo que nela é escrito. Para muitos, os livros são dolorosas memórias de torturas.
E as reformas sempre levam alguma coisa com elas. Já haviam feito isso com o K, o W e o Y, agora reabilitados, se bem que nunca de fato o povo os haja banido, aí estando o Kilo, o Waldir e o Ruy, que não me deixam mentir e nem ao menos caíram na clandestinidade, mas continuaram a circular com grande liberdade. Levaram a indicação da subtônica também, aquela que, por exemplo, marcava com acento grave palavras como “precàriamente” e mostrava a existência da subtônica. (“câ”). Mas, segundo eu soube, nem precisamos (precisamos, sim), nem temos condição de exigir que as subtônicas se pronunciem, tudo bem, não estamos à altura.
Por mim, tenho trauma do trema. Ontem me disseram que fui visto com o olhar distante, em frente a este monitor, sacudindo lentamente a cabeça e murmurando “não me conformo, não me conformo”. Não me recordo disso, pode perfeitamente ser uma invencionice, mais uma das anedotas apócrifas que contam sobre nós, celebridades internacionais. Mas a verdade é que não me conformo não somente com a saída do trema e suas temíveis consequências (em breve alguém lerá aí “consekências”, assim como chegará o dia em que um simpático alemão que veio morar no Brasil nos perguntará, com sotaque ainda carregado, onde poderá comprar “linghiças”, raio de língua difícil, depois reclamam do alemão). Não posso igualmente aceitar a maneira sem-cerimoniosa com que ele foi humiïhantemente defenestrado, depois de tanto tempo de serviços prestados. Expulso sem nem um relógio folheado a ouro de lembrança, uma plaquinha sequer.
O volume principal de besteiras que vem aí, em nome dessas mudanças, embora esteja longe de restringir-se a ele, deverá ser o despejado pelo enlouquecido movimento do “faïa-se como se escreve”, uma completa piração defendida exaltadamente por muita gente. Gente esquecida, é claro, de que a grafia é uma maneira sempre imperfeita, rudimentar mesmo (os textos gregos clássicos não costumavam ter intervalos entre as palavras e muito menos sinais de pontuação ou acentos, isso tudo veio muito depois), de se tentar congelar em símbolos toda a riqueza da fala, suas inflexões, os gestos, os timbres e os tons que a acompanham, enfim, um universo imensamente amplo para 26 letras e alguns sinais diacríticos. Então, “falar como se escreve” é uma inversão completa, que só pode ter efeitos grotescos, para não dizer maléficos. Alguns já podem ser notados, em suas primeiras manifestações insidiosas. O que mais me mexe com os nervos é o umazero (1×0) ou umaum (1×1) de grande parte dos narradores esportivos. Não sei o que deu neles, praticando a forma mais execranda do “fala como escreve”. O eme do final de “um” está aí para nasalar a vogal, só para isso, tanto assim que, em português antigo, era comum escrever-se com til. Agora não, agora se pronuncia “como se escreve”, e o resultado é que, se deixarem a coisa correr solta, daqui a pouco ninguém distingue mais “um olho”, de “um molho”, “um achado” de “um machado”.
Ouço também, embora com muito menos frekência (esta palavra está errada, foi só vontade de usar o K) o M final de “com”, ser “misturado” à vogal inicial da palavra que a segue. “Com ida marcada para” seria “comida marcada para”, o que poderia render um mal-entendido ou outro. E por aí vai a língua, junto com a vida. Alguém já está ganhando dinheiro com isso. Não somos nós, como de hábito, mas nem por isso deixemos de nos alegrar. Combustível novo na combalida economia do livro. E que serve para mais uma vez mostrar aos eternos descontentes como este governo é reformista.
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[Texto de João Ubaldo Ribeiro publicado no jornal “O Globo” do Rio de Janeiro (Brasil) em 04.01.09; reproduzido no “site” da Academia Brasileira de Letras, da qual o autor era membro. Imagem de topo de “blog De Rocha“.]