Galiza: ontem e hoje de um genocídio linguístico – III [por Bento S. Tápia]

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A História da “normalização” da língua da Galiza

Os primeiros intentos sérios de recuperação do idioma e da sua normalização ortográfica arrancam dos anos 60, não sendo a eles alheios a criação da secção de Galego na Faculdade de Filologia da Universidade de Santiago de Compostela. O primeiro catedrático de Galego, Ricardo Carvalho Calero, propugnava critérios reintegracionistas para o seu uso escrito, embora a situação política vigente obrigasse a aplicá-los prudente e paulatinamente. Com a morte de Franco e a implantação de um novo regime de feição democrática, a questão ortográfica vai converter-se em polémica e passar cada vez mais a um primeiro plano.

O novo regime político espanhol, obrigado a integrar-se nos sistemas políticos vigentes na Europa, reger-se-à por uma Constituição que visa a perpetuação do “status quo” linguístico caracterizado pela hegemonia do castelhano e a marginalização do galego, catalão e vasco: segue a ser o único idioma oficial e de obrigatório conhecimento para todos os espanhóis. As “demás lenguas españolas” são também oficiais nas suas comunidades autónomas e serão teoricamente respeitadas e protegidas. Estas declarações pretendem mascarar uma realidade na qual o espanhol mantém a sua supremacia sobre os restantes idiomas do estado, reduzidos à marginalização ou secundarização, considerados na triste realidade prática como património folclórico, objecto de culto, tolerados mas não potenciados. Os organismos jurídicos espanhóis garantirão esta preeminência do espanhol em toda a circunstância; e, se a situação chegar a um limite incontrolável, na própria Constituição está previsto que o exército espanhol garantirá “Ia unidad” de Espanha, unidade que convém lembrar é fictícia, forçada e antinatural. Não se explicitam quais serão os meios para garantir essa enteléquia, mas podemos imaginá-los muito semelhantes aos já utilizados em 1936, afogando em sangue toda e qualquer voz dissidente.

Contudo, este quadro legal de tolerância passiva abriu a porta ao ensino da nossa Língua (e na nossa Língua) nas Escolas e Liceus da Galiza, oportunidade histórica que dava ensejo às novas gerações a não sofrer a grande tragédia padecida sempre pelos filhos da Galiza: o não terem aprendido o seu idioma no Ensino. E foi então que assomou com todo o seu vigor a polémica ortográfica, na qual depressa se singularizaram duas linhas opostas: a qualificada como reintegracionista ou lusista, que seguia o critério histórico-etimológico, defendido pelos mestres do galeguismo, de utilização do sistema ortográfico e morfológico do português para a escrita do Galego; esta linha via no Português aquilo que ele em realidade é, a evolução do Galego sem as travas padecidas secularmente na Galiza. Tal evolução não chegou até ao ponto de fazer de galego e português idiomas diferentes, já que a unidade essencial mantivera-se apesar dos séculos e da separação política. Como realização culta do idioma de Galiza, a ele haveria que acudir para tomar os elementos léxicos necessários que enchessem as lacunas deixadas no idioma em Galiza por tantos séculos de abandono, e nomeadamente os vocábulos pertencentes ao registo culto e científico. Isso não deveria supor, em nenhum caso, o abandono ou rejeitamento de palavras específicas conservadas na Galiza, e verdadeiramente legítimas e próprias do seu idioma. Ninguém quereria por exemplo renunciar a esse formosíssimo vocábulo, “agarimo“, cujo som já produz a sugestão do seu significado. Estas palavras, e outras muitas seriam mantidas dentro do registo próprio do idioma e, com o tempo, até deveriam fazer parte dos dicionários de Português, ao igual que termos especificamente brasileiros, angolanos, timorenses, etc.

Mas, passemos agora a falar da linha contrária, hoje reinante na Galiza e que definiremos como “isolacionista”; de feição claramente espanholizante, o seu modelo de escrita da nossa Língua decalca do castelhano todos os elementos que a constituem: ortografia, morfologia, sintaxe, acentuação… acudindo de preferência a essa língua para todos os préstamos léxicos, e sem ter qualquer rubor em adulterar a Gramática do idioma quando isso é necessário para os seus propósitos, o qual acontece bastante amiúde.

Só um exemplo para ilustrar isto: os dígrafos “ch” e “ll” foram considerados até 2003 como letras, com entrada própria e independente nos dicionários de Língua Galega, e o motivo é bem fácil de entender se sabemos que também eram consideradas como letras na língua castelhana. Foi suprimir a Academia de Madrid tal condição e, só nesse momento, a chamada Real Academia Galega fez exactamente o mesmo.

Seria gravíssimo erro, além de inconsciente colaboração com o poder dominante na Galiza, ver nestas duas tendências uma simples disputa científica entre eruditos e entendidos” a respeito da escrita do Galego; são duas formas diferentes de concebê-lo: uma conduz à sua subordinação e dependência permanente da língua hegemónica, a qual só pode provocar a sua adulteração, empobrecimento, deturpação, asfixia e desaparecimento; a outra restaura a personalidade de Galego, garante a sua existência como Idioma culto e de dimensões universais integrando-o no espaço comum da Lusofonia, assegura a sua sobrevivência, recuperação, enriquecimento e expansão.

Na altura de 1982 vigoravam na Galiza umas normas ortográficas consensuais e de tendência moderadamente reintegracionista, que teriam levado a meio prazo à completa reintegração ortográfica. Mas esta nova ocasião histórica foi novamente frustrada, não por uma sublevação militar mas por um verdadeiro “golpe de estado linguístico” seguido por uma perseguição e depuração dos “inimigos” de que falaremos mais adiante. O golpe de estado linguístico consistiu na imposição forçada embora com toda a legalidade, da normativa ortográfica hoje reinante na Galiza, fiel reflexo da corrente espanholizante e que supunha um claro retrocesso a respeito de toda e qualquer normativa anterior. São conhecidas estas normas como “Decreto Filgueira” pelo nome do seu assinante, na altura Conselheiro da Junta Autonómica e outrora Presidente franquista da Câmara de Ponte Vedra. Esta normativa foi apoiada no Parlamento de Galiza pelos partidos políticos representantes do poder espanhol (Aliança Popular, União de Centro Democrático, Partido Socialista Obreiro Espanhol) e contestado pelas forças nacionalistas do Bloco Nacionalista Galego e Partido Socialista Galego-Esquerda Galega, embora com o tempo esta última agrupação (hoje desaparecida do cenário político) derivasse linguisticamente cada vez mais na órbita espanholizante enquanto que o Bloco Nacionalista Galego manteve sempre uma postura mais crítica, porém nunca chegando a defender o reintegracionismo por razões de estratégia política.

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No âmbito cultural a contestação a esta normativa foi muito mais forte. Assim, ante o facto de a Real Academia Galega fazê-la sua, destacados membros da citada instituição abandonaram-na em sinal de disconformidade, como por exemplo o que fora primeiro catedrático de Galego na Universidade de Santiago, Ricardo Carvalho Calero. A normativa espanholizante foi apoiada também pelo ILG (Instituto de Ia Lengua Gallega), instituição dependente da Universidade de Santiago e verdadeira “alma mater” da espanholização do galego, simbolizada na sua cabeça dirigente Constantino Garcia, que não é galego e cujo idioma pessoal e de uso habitual como não podia ser menos, era o castelhano.A nova normativa foi também rejeitada por muitos escritores e por personalidades da Língua e da Cultura de Galiza, mas também foi apoiada por outros “intelectuais” que preferiram vender a sua consciência e o seu pensamento ao poder dominante embora com isso traíssem todo o labor feito pelo galeguismo histórico desde 100 anos atrás. E o mesmo dilema se verificou nas associações culturais, surgindo desde então algumas dedicadas a reagrupar os defensores do reintegracionismo e a dar a batalha no plano cultural. Entre o labor destas associações, merece mencionar-se o “Estudo Crítico” das normas espanholizantes feito pela equipa linguística da AGAL (Associação Galega da Língua); é uma análise rigorosa e pormenorizada das citadas normas, onde se põe em evidência a incoerência e anarquia da normativa espanholizante e se desmascaram os seus verdadeiros propósitos destrutivos para com o Galego, defendendo como alternativa a única saída possível: a adopção do sistema ortográfico português.

O que de agora em diante vai acontecer na Galiza é um processo dantesco e propositado de impor por qualquer meio a normativa castelhanizante pelos sucessivos poderes autonómicos pró-espanhóis da Galiza. Não se vão poupar meios na perseguição e marginalização dos defensores da ortografia histórica e comum ao português, chegando a extremos que é justo qualificar de terrorismo cultural, intelectual e psicológico que só pode perseguir um objectivo claro e inconfessável para o poder: a eliminaçao da Língua e da Cultura próprias na Terra que foi o berço de Portugal, Galiza.


Fotografia de topo: «A Veiga, Ourense – Galiza». De Toprural – originally posted to Flickr as eido das estrelas, Valdin, Ourense, Galicia (España), CC BY-SA 2.0,
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Recorte: http://www.parlamento.gal/sitios/web/tenda/default.aspx

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Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
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