Da teoria à prática
Vejamos agora quais são os mecanismos que desenvolvem os poderes dominantes na Galiza para impor a normativa castelhanizante no Idioma e dissolver a identidade galega, os quais podemos localizar em âmbitos muito diferentes.
No Ensino, o galego-português escrito em castelhano (coloquialmente conhecido como castrapo), é o ensinado nas Escolas e Liceus da Galiza, exceptuando alguns poucos centros onde a equipa de professores acordou ensinar a normativa chamada “de mínimos”, moderadamente reintegracionista. Em troca, a normativa própria da nossa Língua, coerente com os critérios científicos e histórico-etimológicos, é ignorada, deturpada ou falseada: chegam-se a dizer dos seus defensores inexactitudes como a de que pretendem substituir o galego pelo português (!) ou a de que defendem que o galego desaparecerá e que o único caminho que nos resta é falar e escrever português; nestas inexactitudes está implícita, ademais, a não distinção elementar entre nível oral e nível escrito de um idioma, misturando e confundindo arbitrária e interesseiramente os dois.
Se algum professor reintegracionista se “esgueira” e pretende explicar aos seus alunos as ideias e argumentos daqueles que defendemos a unidade da Língua, pode ocorrer que em breve apareça com a maior das legalidades a Polícia linguística para abrir expediente, investigar ao infractor e avisá-lo “cordialmente” dos possíveis e negativos efeitos do seu proceder.
Falar de como os conteúdos dos livros de texto estão subordinados aos propósitos do poder exigiria específico, demorado e pormenorizado estudo; basta dizer que neles é constante a apresentação de textos literários alterados ortograficamente com respeito à sua redacção original para adaptá-los à normativa castelhanizante, textos que abrangem desde a poesia lírica medieval até aos autores e pensadores galegos do passado século e deste: Eduardo Pondal, Risco e um longo etcétera. Pretende-se assim ocultar aos escolares galegos a verdade histórica da sua Língua e de qual foi o seu código ortográfico e o pensamento e a a prática de quem o defendia.
Outra prática habitual das primeiras lições dos livros de texto de Língua Galega são exercícios pondo em paralelo um texto escrito em castrapo e outro redigido em português para “diferenciar galego e português” (!).
E não acabaremos sem mencionar como os livros de texto ocultam sistematicamente o pensamento reintegracionista pró-português dos escritores e pensadores galegos do passado, que já citámos acima, pensamento que seria altamente comprometedor para os interesses do poder. A desvergonha chega até a trair a memória dos mortos, querendo assimilar o seu pensamento ao do poder dominante e dizendo que se tal ou tal figura estivesse viva apoiaria a política linguística que se está a praticar hoje, afirmação que qualquer mínima leitura do pensamento patriota galego do passado demonstra ser uma descomunal mentira.
Capítulo especial merecem as editoras e a criação cultural: Após a imposição da normativa castelhanizante, o primeiro passo que deu o poder oficial galego foi procurar concentrar nas suas mãos todo o controlo possível sobre o mercado das edições de livros em galego. Para isso foram literalmente compradas com dinheiro as duas editoras mais importantes em tal âmbito, Galáxia e Xerais de Galicia, sucursais das editoras espanholas SM e Ediciones Generales Anaya. Assim, a Junta de Galiza impunha-lhes a obrigação de utilizar nas suas publicações as normas castelhanizantes e fornecia-lhes em troca um negócio cujos benefícios eram fabulosos: o monopólio dos livros de texto obrigatórios para o Ensino, entendendo como tais os manuais e os diferentes livros de leitura obrigatória. Além disto, a estas editoras é encomendada a publicação, generosamente subsidiada, de outros livros e colecções, como por exemplo a chamada “Biblioteca Básica da Cultura Galega”, da Editorial Galáxia e patrocinada pelas Deputações Provinciais de Galiza.
A chantagem do dinheiro amplia-se a toda e qualquer publicação, que só pode aspirar a receber subsídios oficiais se respeita submissamente as normas do castrapo. Não nos deveria enganar o facto de que em determinadas publicações, de âmbito de influência restrito a uns quantos especialistas, se possa publicar em português, como é o caso do Boletim de Filologia VERBA. É que enquanto se usa o português como língua estrangeira não há qualquer problema, este surge quando o português e o seu código ortográfico são admitidos e assumidos como próprios para a Língua de Galiza.
A negação de toda a ajuda à publicação em galego legítimo, além de ir contra a liberdade criativa e ser uma cadeia para o pensamento, visa a eliminação e/ou marginalização das publicações na nossa Língua na Galiza.
Imprensa Escrita: o controle institucional na Galiza sobre a imprensa escrita exerce-se de várias maneiras; a maior, menor ou nenhuma inserção de publicidade institucional nas suas páginas, a adjudicação às empresas editoras de jornais do exclusivo sobre publicações institucionais, etc.; neste contexto basta criar a adjudicação do “Diário Oficial da Galicia” à editora de um jornal que se distingue pela sua orientação antigalega, “La Voz de Galicia”.
A contraprestação é óbvia: a censura aos escritores, artigos, notícias e até Cartas ao Director redigidas na ortografia própria do Galego, censura de que só estão isentos até agora um reduzido número de jornais, e que acarreta a autocensura dos jornalistas, obrigados a escrever em castelhano ou em galego deturpado para as suas colaborações serem admitidas. “O Manual de Estilo” do jornal “La Voz de Galicia” vai mais longe e determina claramente que todas as notícias deverão redigir-se em castelhano, e que o galego-castelhano só poderá utilizar-se nos artigos de opinião e num número muito reduzido de notícias. De facto, durante muitos anos este jornal publicou em castelhano as entrevistas, mesmo que o entrevistado tivesse respondido na nossa Língua.
Menção à parte e digna também de pormenorizado estudo seria a destacada presença diária nesses artigos de opinião de declarados inimigos da ortografia etimológica do Galego (inimigos, no fundo, de qualquer Galego); neles, menosprezam ou ironizam sobre Portugal, afirmando com evidentes matizes de desprezo que os defensores de um galego culto e reintegrado devemos pedir ajudas e subsídios à Embaixada portuguesa ou ao Ministério português correspondente.
Irónica, se não fora tão terrível, nos deveria parecer a política de ajudas para aliciar a publicação em Galego, porque só desde começos de 1994 houve um jornal diário em galego (castrapo evidentemente), desaparecido em 2010. Antes e depois, tais ajudas foram regularmente dadas a meios que ignoram o galego ou fazem dele uma utilização folclórica ou simbólica. Especialmente triste foi a negação de ajudas às poucas publicações regulares que na Galiza usavam a nossa Língua, como “A Nosa Terra” ou “A Peneira”, hoje já desaparecidas. A argumentação do poder foi a de que não eram jornais diários senão semanais, sendo a imprensa diária a única possível destinatária de tais ajudas (!). Uma janela de esperança se tem aberto com a imprensa digital, menos dependente da censura económica do poder, na qual, à partida, a obriga da autocensura ortográfica é menor do que na tradicional.
O que dizer da rádio e da Televisão? Devemos Insistir neste apartado nos mecanismos de censura e silenciamento anteriores, que aqui levam à impossibilidade de os reintegracionistas poderem expor as suas ideias ou opiniões nestes meios; para além disto, no plano laboral os profissionais “suspeitos” de lusismo correm o risco de perderem o seu posto de trabalho como retaliação pelas suas ilegalidades. Por contra, estes dois meios são amplamente generosos quando se trata de admitir colaborações ou adjudicar programas a destacados inimigos da Língua e da Cultura da Galiza: sirva como exemplo o do jornalista de “La Voz de Galicia” Carlos Rodriguez, que da sua coluna diária leva tantos anos atacando-as com energias e tenacidade dignas de melhor causa; pois bem, já são duas as vezes em que se lhe tem adjudicado a direcção de programas-colóquio na Televisão de “Galicia”, cuja teórica obriga é coadjuvar para a defesa do património cultural galego.
Especialmente preocupante é o nível de correcção com o que a nossa Língua se emprega nestes meios; além do banimento do sesseio, rasgo fonético presente na Galiza e que aproxima as realizações faladas do nosso idioma a ambos os lados do Minho, resulta indignante verificar a deturpação e a pobreza do galego falado na maior parte dos programas, chegando mesmo a aberração de ser o nome de um programa “A casa da conexa”, sendo esta última palavra uma castelhanização do vocábulo “coelha”. A fonética é a do castelhano e as incorrecções e vulgaridades de toda classe inçam até extremos alarmantes, algo que não nos deve estranhar se temos em mente que o castelhano é a língua da maioria destes profissionais na sua vida quotidiana, enquanto que o Galego é só o idioma do microfone ou da câmara. A ninguém se lhe podem escapar as consequências de tudo isto num mundo onde o uso do idioma que se faz em tais meios, nomeadamente na televisão, é o que costumam a imitar as classes populares: estas, na Galiza, ao falarem Galego, estão abandonando as suas formas e variantes tradicionais, mais pulcras e correctas foneticamente que as de tais meios, os quais favorecem um galego vulgar e espanholizado.
Não podemos tampouco esquecer o que ocorre com os prémios literários: Na maioria dos certames convocados por organismos oficiais (Concelhos, Associações Culturais, etc.) não são admitidos para a sua valorização os textos escritos na nossa ortografia comum; curiosa e tristemente, isto já se está fazendo extensivo a certames convocados por Organizações Não Governamentais ainda que estas tenham como lema a luta contra as injustiças ou a repressão. É este o caso de um concurso literário organizado recentemente na Galiza por Amnistia Internacional, em cujas bases figurava a obrigatoriedade de apresentar os trabalhos em castrapo: assim, tal associação convertia-se em cúmplice do processo de genocídio cultural que estamos a sofrer na Galiza.
Quanto aos prémios em si, e salvo honrosas excepções, estão dirigidos não a dar uma gratificação ou reconhecimentos méritos literários senão a pagar a fidelidade e submissão pessoais às doutrinas do poder dirigido. De tal jeito, não é de surpreender que muitos nomes de premiados em tais certames se repitam até ao aborrecimento por corresponderem a escritores vendidos ao poder e inimigos declarados da ortografia galego-portuguesa: a lista vai desde os espanholistas mais declarados como José Filgueira Valverde ou Alfredo Conde até aos “independentistas galegos”, elementos folclóricos que são circensemente exibidos na Galiza e Portugal pelo poder espanhol da Galiza como Xosé LUÍS Méndez Ferrin.
Especialmente lamentável e nojento é o caso das Medalhas Caslelão, outorgadas pela Junta de Galiza e que levam o nome do insigne Galego que pagou com o exílio e a morte em Buenos Aires o seu amor e defesa pela Galiza; tais medalhas são concedidas a destacados debeladores do próprio galego castrapo (por o preterirem, e defenderem o castelhano como idioma habitual para todos os galegos), e portanto ferozes inimigos do Galego escrito com a nossa grafia comum; e, não raro, são personagens que nos seus escritos têm atacado não só a nossa Língua senão também denegrido e ridicularizado a memória de Castelão depois de morto como é o caso de Luís Moure Marino.
Pressão jurídica: falemos agora da atitude das próprias instituições que, em teoria, têm de administrar essa palavra tão formosa que chamamos Justiça, uma atitude contraditória e crescentemente hostil ao português da Galiza.
Pelo geral, os Tribunais não admitem escritos e recursos redigidos correctamente na nossa Língua, embora haja excepções e até alguma vez tenham feito pública alguma sentença assim escrita; este caso, obviamente, é produto só da atitude individual e comprometida do magistrado correspondente.
Assunto de citação obrigatória, como exemplo de aceitação jurídica da grafia galego-portuguesa, foi o surgido após a impugnação pela Junta da Galiza dos Estatutos de Universidade de Vigo. Estes foram anulados na sua totalidade pelo Tribunal Superior de Justiça de Galiza, excepto o capítulo que contemplava a não discriminação na concessão de subsídios e de patrocínio da Universidade a qualquer publicação em Galego por razões ortográficas. Admitia a sentença a pluralidade democrática de opiniões e a possibilidade de levá-la à prática num âmbito, como o universitário, no que o diálogo, o debate e o intercâmbio de ideias devem ser elementos sempre presentes. Pois bem, perante tal sentença, a Junta de Galiza anunciou o recurso em apelação ao Tribunal Supremo Espanhol, afirmando os seus representantes estarem dispostos a levar a questão se for necessário até o Tribunal de Estrasburgo: até tal extremo chega o empenho dos actuais governantes da Galiza por castelhanizar, desmembrar e destruir a nossa Cultura comum na Terra onde ela nasceu.
Ao lado destas tímidas e pontuais luzes de esperança, no horizonte jurídico desenha-se um panorama desolador para o Galego: o nosso idioma praticamente não existe, apesar dos direitos legais reconhecidos para a sua utilização. E, a princípios de 1994, e em evidente contradição com os mais elementares princípios jurídicos que regem em qualquer Estado do mundo, uma sentença do Tribunal Superior de Justiça de Galiza reconhecia à Junta Autonómica o direito a não admitir escritos redigidos em galego reintegrado argumentando que a Junta não estava obrigada a fazer o esforço de readaptação necessário para adequar a escrita à normativa oficial do galego: sentença aberrante, já que em nenhum país do mundo a suposta incorrecção ortográfica de um escrito é óbice para que este tenha pleno valor legal; a filosofia desta sentença é que qualquer poder constituído pode violentar os mais elementares direitos humanos e forçar as nossas consciências, ao pretender dar carta de legitimidade a um governo e a umas instituições quando estas nos querem obrigar a escrever a nossa Língua com faltas de ortografia.
Há que mencionar também o controle das instituições culturais: muito demorado seria falar aqui do ocorrido nos últimos trinta anos neste penoso aspecto da vida cultural galega; na essência, devemos citar como naquelas instituições que deviam vigiar e defender a nossa cultura (Real Academia Galega, Conselho da Cultura Galega) se produziu já desde antes da morte de Franco uma infiltração de indivíduos afectos ao centralismo espanhol ou, ainda procedentes do galeguismo, prestes a vender o seu pensamento aos novos poderes, tão antigalegos como já fora o regime franquista. Lembremos como exemplo destacável o de Domingo Garcia Sabell, que combinou na sua pessoa os cargos de Delegado do Governo de Madrid em Galiza e de Presidente da Real Academia Galega: esta presidência não foi obstáculo para interpor (e ganhar) recursos judiciais contra a Lei de Normalização Linguística de Galiza, por esta dizer tímida e moderadamente que os galegos tínhamos a obrigação de conhecermos a nossa Língua. Imaginam vocês a um alto representante da Língua e da Cultura de qualquer nação recorrendo legalmente contra uma lei que pretende defender o conhecimento e o uso de tal Língua e Cultura? Pois isso na Galiza foi (e é) possível.
Especialmente hostil a todo o intento de restauração gráfica do português da Galiza é a Faculdade de Filologia da Universidade de Santiago, no seu “Departamento de galego-português”; já falámos do papel do “Instituto de Ia Lengua Gallega” (ILGA), organismo dependente da Universidade e verdadeiro criador da normativa espanholizante sob a direcção do pretenso filólogo Constantino Garcia, não galego falante e não galego. Esta instituição recebe importantes subsídios económicos dos poderes públicos e dá ocupação a muitos “investigadores” da língua; desde a sua criação desempenhou um labor persistente e tenaz de destruição das raízes da nossa língua e implacável espanholização dela, apoiando-se em argumentos pseudo-científicos cuja constante era a “diferenciação de português e galego”. O ILGA age em perfeita harmonia com a secção de Filologia Galego-portuguesa da Faculdade de Filologia da Universidade santiaguesa, na qual foi rigorosamente proibido (sob risco de reprovação nos exames) o correcto uso escrito do galego-português. Do anterior, é facilmente deduzível a impossibilidade de acederem a estas instituições galegos que tenham uma opção gráfica diferente à espanholizante.
O exemplo mais recente do afã de controle destas instituições sobre a vida cultural de Galiza foi a supressão da secção de Filologia Galego-Portuguesa da Universidade de A Corunha: a razão real de tal liquidação foi a constatação de ser aquela um viveiro fértil do reintegracionismo, ao estar emancipada do controle da homónima dependente de Santiago de Compostela. O medo que tal facto produziu nos círculos do poder fez com que se pressionasse para tal supressão, admitida pelo Reitor da Universidade corunhesa, José Luís Meilán Gil, dizendo que “tais estudos, na realidade, nunca existiram na Universidade de A Corunha e que só tiveram até então carácter experimental”! Quer-se, como podemos ver, que a Faculdade de Filologia de Santiago tenha o monopólio e o controle absolutos sobre os futuros Licenciados e Docentes, evitando qualquer oposição aos desígnios actuais de destruir a ortografia e as raízes da nossa Língua em Galiza, afastá-la do seu espaço próprio e natural que é o da Lusofonia e integrá-la na do castelhano para matá-la por asfixia e inanição culturais.
Fotografia de topo: «Preto do Aquarium Finisterrae». De Paulo Brandao – originally posted to Flickr as La Coruña, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4343340
Figura: «Gravado da cabeceira d’A Nosa Terra, voceiro das Irmandades da Fala.» De Pedro Ferrer Sanz – Realizada polo fotógrafo e gravador Pedro Ferrer Sanz (1870-1939) na cidade da Coruña., Dominio público, https://gl.wikipedia.org/w/index.php?curid=134830
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII