Galiza: ontem e hoje de um genocídio linguístico – VI [por Bento S. Tápia]

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Objectivos do poder

Até agora temos visto, ainda que dentro das naturais limitações deste trabalho, como os sucessivos governos autonómicos galegos têm praticado uma política que visa a perpetuação da situação de menoscabo histórico do nosso Idioma na Galiza. Hoje, não só se continua esta política com a maior das agressividades como se quer legitimar o castrapo galego-castelhano em todos os meios e níveis: sucessão ininterrupta de prémios literários a castrapeiros, prémio de tradução literária da Bíblia em castrapo, admissão do galego-castelhano como idioma de trabalho nas instituições europeias, etc.

Parte muito importante dos projectos dos governantes autonómicos galegos tem sido o labor de infiltração e “castrapeirização” de Portugal, especialmente intensa desde o acesso à presidência da Galiza de Manuel Fraga Iribarne (1989), outrora censor e perseguidor das línguas autóctones dos povos galego, basco e catalão. Os cada vez mais frequentes contactos e visitas a Portugal daquilo que podemos chamar o seu “circo castrapeiro” de teóricos escritores e intelectuais galegos inseriram-se no nunca esquecido projecto espanhol de castelhanizar o país irmão da Galiza; e não só castelhanizar, mas também partir e dividir, aliciando estranhos e suspeitos projectos como o de colaboração “Galicia-Región norte de Portugal”; tal projecto económico, irmão de outros que vão dividindo Portugal em regiões económicas, fazem-nos lembrar outras divisões de Portugal projectadas desde a Espanha, como as contempladas no tristemente célebre Tratado de Fontainebleau de 1807.

Castelhanizar Portugal é elemento indispensável para que a nossa entranhável Terra que se estende do Cantábrico até ao Algarve acabe desaparecendo como conjunto com identidade própria da face do planeta; também serve para que o Portugal oficial cale e outorgue perante o que está a passar na Galiza, na Terra-Mãe, sem preocupar-se responsavelmente pela sorte da sua Língua e Cultura ali onde elas nasceram. A invasão dos meios de comunicação social em espanhol em Portugal (sem contrapartida na Galiza e muito menos na Espanha com os meios de comunicação social portugueses), é também parte deste projecto. Lembremos aquele que foi episódio especialmente grotesco: a assinatura de um convénio para leccionar na Universidade Nova de Lisboa o castrapo ou galego-castelhano imposto à força na Galiza. Assim, os portugueses já podem conhecer como escrever o seu idioma com o sistema ortográfico e morfológico do espanhol, labor abençoado pelas instituições oficiais portuguesas que nem sequer exigem a contrapartida natural nestes casos, como seria a igualdade de condições na Galiza para com aqueles que querem utilizar o código ortográfico português.

Muito dolorosos foram para os galegos que defendem a sua identidade como Nação, a sua Língua e a sua Cultura, os reconhecimentos do Portugal oficial ao presidente Fraga Iribarne, reconhecimentos que vão desde Câmaras Municipais como a de Chaves até o outorgamento da máxima condecoração portuguesa, a Ordem de Cristo. Pouco antes de ganhar as suas primeiras eleições em 1989, em entrevista concedida ao jornal santiaguês EL CORREO GALLEGO, qualificava o senhor Fraga de “asquerosos” os defensores do reintegracionismo linguístico e dizia que a nossa Língua era apta só para falar com os amigos jogando ao dominó, do qual o senhor Fraga é consumado especialista, e não era adequada para falar de temas cultos e elevados; ideologia esta com a que foi coerente desde a sua chegada ao poder na Galiza até ao ano de 2005; nesses 16 anos, a política cultural do governo galego tem convertido em noites escuras e sinistras os dias do nosso Idioma na Galiza. Lembremos também como o mesmo senhor Fraga motejou burlescamente de “portuguesa” a uma deputada nacionalista galega no Parlamento autonómico; naturalmente, em Portugal o discurso do senhor Fraga Iribarne é completamente diferente, em harmonia com o que foi sempre a sua atitude camaleónica e que tem permitido sobreviver a tantos avatares políticos a quem no seu dia foi ministro da ditadura franquista assinando, como tal, diversas penas de morte. Em Portugal falou de “vizinhos que temos basicamente a mesma língua”, sem mencionar que a norte do Minho a instituição que ele presidia era responsável pelo constante retrocesso dessa Língua que procurava marginalizar. Portanto, atenção a essas demonstrações de camaradagem e colaboração com Portugal, verdadeiros beijos de Judas para vender Galiza e Portugal ao poder espanhol. Também não foi fácil desde 1989 a existência na Galiza das organizações e associações reintegracionistas, já que o poder oficial buscou asfixiá-las economicamente e silenciar todas as opiniões dos seus membros.

O senhor Fraga foi pois digno continuador de si próprio (quando, como Ministro da Ditadura de Franco protagonizou a perseguição às Línguas de Galiza, Catalunha e Euskadi) e da política e praxe dos anteriores governos galegos, todos eles inimigos de toda e qualquer via reintegracionista. E desde que em 2005 teve de deixar a Presidência da autonomia galega quando os eleitores não lhe renovaram a sua maioria absoluta, nada de essencial tem mudado nos governos que se lhe seguiram, o primeiro deles uma coligação entre os socialistas espanholistas do PSOE e os nacionalistas autonomistas do Bloco Nacionalista Galego (2005-2009), e desde esta última data, do mesmo Partido Popular ao qual pertencia o ministro franquista.

E qual a atitude do Portugal oficial? Pois não outra do que premiar o labor de genocídio linguístico e cultural na sua pátria de origem, Galiza, recompensando uma personagem simbólica em tal prática; contudo, não valorizemos em excesso a figura de Fraga Iribarne nem a dos seus sucessores em tal iníqua tarefa, vejamo-las nos seus justos limites de testas-de-ferro de um poder centralista que procura a eliminação da identidade dos povos periféricos do estado espanhol. E, para tais propósitos, não esqueçamos que a Galiza é a nacionalidade mais perigosa porque tem algo que nem a Catalunha nem Euskalherria têm: Portugal. Destruir e diluir a identidade de Galiza só é possível se ao mesmo tempo se paralisa mortiferamente Portugal através de miragens e promessas enganadoras; reflecte isto uma mentalidade omnipresente através dos séculos nos poderes espanhóis: a de olhar Portugal como um acidente histórico que tarde ou cedo terá de ser “corrigido” e reabsorvido para realizar a “sagrada unidade peninsular”.

Castelhanizar pela força o português da Galiza, com as resistências que isso acarreta nos galegos conscientes e a confusão e pluralidade de normativas habituais desde 1982, só pode ter como propósito promover dificuldades de toda a classe no uso da Língua escrita, evitando qualquer verdadeira possibilidade de normalização e recuperação linguístico-cultural da Galiza, anulando a afirmação da nossa identidade diferenciada a respeito de Espanha. O seu significado profundo é bem evidente, a pouco que o pensemos, e localiza-se em vários aspectos que podemos resumir em:
a) Ataque à nossa tradição e às nossas raízes como possuidores de uma Língua escrita, com tradição histórica e cultural, nascida do Latim.
b) Ataque à presença de Galiza à sua área cultural e linguística, impedindo a normal inter-relação com ela.
c) Ataque à normalização absoluta plena e à recuperação para a Galiza de um idioma universal, com 200 milhões de utentes nos cinco continentes, o que daria garantias de êxito em dois planos: a eliminação das consequências nefastas de tantos anos de língua ágrafa, e a sobrevivência do idioma num mundo cada vez mais ameaçador para as línguas minorizadas, por ser homogeneizador e uniformizante.
d) Ataque à possibilidade de recuperar a memória histórica e a identidade galegas, já que Portugal e o português são a concretização da Galiza livre e soberana, que resistiu ao poderio e à pressão de Castela. Olhar para Portugal e para a Língua portuguesa é olhar para nós próprios, para o que teria sido a nossa Terra e com ela nós, os galegos, como Povo livre e criador sem a incorporação a Castela; com tal forçada união, a Galiza foi perdendo as manifestações originais da sua cultura.

Tudo isto é o que persegue o poder hegemónico na Galiza, disfarçando o idioma com uma grafia alheia, com as inevitáveis consequências que isso pode trazer a longo prazo; e é que à castelhanização gráfica acompanha o avulgaramento e a folclorização da Língua, o que conduz inevitavelmente à sua maior deturpação, ao seu esmorecimento e, finalmente, ao seu desaparecimento como Língua e cultura e como língua viva.


Imagem de topo: O rio Minho em Vila Nova de Cerveira. De User:Iago PilladoObra própria, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6112905

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Capítulo II
Capítulo III
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Capítulo V
Capítulo VI
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