Luxemburger Wort – “À mesa com Gonçalo M. Tavares”

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Há uma frase sua que lembra Barthes, a questão de a linguagem ser uma pele, de servir para nos tocarmos: “A língua portuguesa é uma forma particular de tocar e de ser tocado”. Sentiu esse toque da língua portuguesa no Luxemburgo?

Sim, senti. Realmente percebi que há muitos funcionários que falam português nos serviços, incluindo nos vários museus em que estive, como no Casino [Fórum de Arte Contemporânea], onde estava um funcionário português extremamente simpático. Não me lembro de nenhum sítio onde não tenha ouvido falar português  A língua tem a ver não apenas com a função, é também uma canção. A língua começa como som, quando estamos na barriga da mãe e já começa a embalar. Muitas vezes a questão não é a língua servir para nos informar, mas de a língua nos embalar com o som, com o ritmo. Alguém falar a nossa língua, alguém ser português, não é só importante por percebemos que alguém fala a nossa língua, mas porque alguém teve os mesmos sabores na infância, por exemplo – uma coisa de que os emigrantes falam muito.

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Tem um desacordo também com o acordo ortográfico, continua a escrever com a ortografia antiga. Porquê?

Não sou um fundamentalista. Hoje já não lemos o Fernando Pessoa como ele escreveu, já alterámos, não lemos Camões como ele escreveu. Mas acho que este acordo ortográfico tem coisas completamente despropositadas.

Por exemplo?

O “para”, o “pára” [nota: o verbo e a preposição passam ambos a ser escritos sem acento]… Mas não quero criar muita confusão sobre isto, porque há problemas que já estão criados.

No seu caso, o que é que lhe desagrada? É uma razão estética?

Sim, estética, aqueles ‘Cs’ que faltam. Mas eu não quero valorizar demasiado a minha opinião sobre isso, porque é uma opinião afectiva, e acho que mais do que a nossa opinião devemos pensar no que é melhor para os falantes de português.

E o que é que acha que é melhor?

Sinceramente, não sei. Acho que foi um erro, ao ter avançado com este acordo, ter mudado já os livros e as crianças estarem a aprender já há vários anos com o novo acordo ortográfico. Isso foi um erro que criou aqui um problema. Alguns começaram com o antigo acordo e a meio da escolaridade mudaram, e agora mudar novamente seria também qualquer coisa de muito violento e de quase patético.

Mas acha que o acordo vai servir para alguma coisa?

Eu acho que não, acho que é um disparate. Todos os desentendimentos entre os falantes de língua portuguesa têm mais a ver com entendimentos diferentes das palavras. Um exemplo: “propina”, em Portugal, é o dinheiro que paga um estudante universitário; no Brasil é o dinheiro da corrupção. Um leitor brasileiro que não tenha essa informação básica lê “o aluno pagou a propina à universidade” e pensa que houve corrupção, e interpreta o resto do texto de uma forma completamente errada. As palavras podem ter lá o P ou o C, não é essa a questão. Não há ninguém que não entenda o que é “afecto”, com C ou sem C: a grande questão era económica, para fazer os mesmos livros para Portugal e o Brasil, e isso não aconteceu, porque o que muda principalmente entre os dois países é a sintaxe, a forma da construção da frase. Não conheço um livro que tenha sido editado ao mesmo tempo em Portugal e no Brasil graças à nova grafia. Mesmo nas traduções: o Proust foi traduzido pelo Pedro Tamen para português, é uma tradução extraordinária, mas não é usada no Brasil, porque o português é diferente.

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[Extractos da entrevista de Paula Telo Alves ao escritor Gonçalo M. Tavares publicada no jornal “Luxemburger Wort” em 12.05.16. A foto é do jornal. Destaques meus.]

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