«Marcelo Rebelo de Sousa e o Acordo Ortográfico de 1990» [opinião, “Público”]

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Marcelo Rebelo de Sousa e o Acordo Ortográfico de 1990

Francisco Miguel Valada

18/05/2016 – 07:30

O debate sobre o AO90 nunca foi aberto, por isso é um erro mencionar-se uma reabertura. Aquilo que houve foi uma imposição.

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Há algumas semanas, soube que Marcelo Rebelo de Sousa, pouco depois de ter tomado posse como Presidente da República, decidira reabrir o debate sobre o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). De facto, a confirmar-se tal informação, tratar-se-ia de atitude, além de merecedora de várias ovações de pé, em absoluta harmonia com um artigo publicado no Expresso, dias antes da tomada de posse, no qual Rebelo de Sousa não adoptara o AO90. Entretanto, notícias na comunicação social têm confirmado essa vontade de reavaliar o ponto da situação ortográfica.

Contudo, neste contexto, “reabrir o debate” não será a opção mais feliz, pois existe um prefixo a mais. Salvo iniciativas pontuais (uns colóquios aqui, umas audições ali, umas audiências acolá), o debate sobre o AO90 nunca foi aberto, por isso é um erro mencionar-se uma reabertura. Aquilo que houve foi uma imposição. Aliás, a consequência imediata da escassez de sessões de esclarecimento e da abundância de propaganda é uma maior permeabilidade de leitores de português europeu em relação a opiniões, digamos, peculiares.

Por exemplo, há quem afirme publicamente que “se disser Egito escreve sem ‘p’, mas se disser Egipto escreve com ‘p’ (*)”; há quem divulgue a ideia de a “dupla grafia” ser “recorrente na história da língua portuguesa” e apresente exemplos tão sui generis como “regime”/“regímen”, “areia”/“arena”, “imprimido”/“impresso” ou “olho”/“óculo” (*); há igualmente quem escreva “agora ‘facto’ é igual a fato (de roupa)” (*). Convém ter bastante cautela com estas opiniões e só um debate esclarecedor dará a possibilidade de explicar o que está em causa — além de permitir aos autores destas opiniões virem a terreiro defender-se ou retractar-se.

Convém igualmente que haja, por fim, um órgão de soberania a pôr os pontos nos ii em relação a esta matéria e a tomar uma atitude responsável, sendo muito provavelmente o Presidente da República o mais indicado, porque se sente obrigado a praticar algo que não prega. Isto é, adopta uma grafia para inglês ver. Depois da confidência de Cavaco Silva (com a agravante de ter culpas no cartório) – “Todos os meus discursos saem com o acordo ortográfico mas eu, quando estou a escrever em casa, tenho alguma dificuldade e mantenho aquilo que aprendi na escola” (*) –, temos agora Rebelo de Sousa a afirmar: “o Presidente da República, nos documentos oficiais, tem de seguir o Acordo Ortográfico. Mas o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa escrevia tal como escrevem os moçambicanos, que não é de acordo com o Acordo Ortográfico” (*).

Em peça da RTP (*), é perceptível que esta afirmação de Rebelo de Sousa provocou o riso de um dos interlocutores. Não percebi a piada. Isto é, o riso foi perceptível, mas a piada não foi: porque existe uma relação entre perceptível e perceber, porque perceptível é aquilo que pode ser percebido e percebido é o que se percebeu e perceber é ter a percepção de algo. O mesmo acontece com o que pode ser recebido, pois pode receber-se e receber é dar recepção. O mesmo acontece com concebido, conceber e concepção. Por isso existe aquele ‘p’, de -pç-, em concepção, percepção e recepção(*).

Por isso e não só. Aquele ‘p’ também permite que se evite a vulgarização de desastres, como a recente tradução portuguesa “a recessão de luz sobre os painéis solaresdo original francês “la réception de la lumière sur les panneaux solaires” (*). Vindo ‘perceptível’ a talhe de foice, recordemos um factor importante: com o AO90, no Brasil, ‘perceptível’ mantém-se; com o AO90, em Portugal, ‘perceptível’ passa a ‘percetível’. Há quem lhe chame “unificação ortográfica” (*) ou “ortografia comum” (*).

Como é sabido, a Assembleia da República não tem percebido – ou não tem querido perceber: nesta matéria, como noutras, a doutrina diverge –as provas apresentadas sobre a supremacia dos defeitos do AO90 em relação às suas hipotéticas virtudes e as gritantes diferenças entre a quimera de um acordo ortográfico em abstracto e o desastre AO90 em concreto. Aliás, os actos e omissões deste órgão de soberania em relação a esta matéria podem ser apresentados como um excelente exemplo de assimetria entre a vontade do eleitor e a atitude do eleito.

O Governo, pela voz do primeiro-ministro, não toma “a iniciativa de desfazer o acordo ortográfico” (*) e, garante o ministro dos Negócios Estrangeiros, “aguarda serenamente” a ratificação do AO90 pelos restantes membros da CPLP. Isto é, “aguarda serenamente” que outros tomem iniciativas, em vez de se preocupar com as vítimas portuguesas que o desastre vai produzindo. Por exemplo, no Diário da República de 4/5/2016, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa, nos “parâmetros preferenciais” para a contratação de um professor associado, determina o seguinte: “Ser titular do grau de Doutor em Estratégia ou História dos Fatos Sociais” (*). Exactamente: História dos Fatos.

Aguardando serenamente que outros ratifiquem aquilo que, atempadamente, membros da comunidade científica portuguesa recomendaram que não fosse ratificado por Portugal (*), o ministro dos Negócios Estrangeiros vai permitindo que, no Diário da República, além de continuarem a adoptar grafias inadmissíveis em português europeu, também deturpem a língua inglesa. Um excelente exemplo aparece na edição de 6/5/2016, com “questões relacionadas com fatores [sic] humanos” traduzido da seguinte forma: “human fator issues” (*). Fator issues? Efectivamente: fator issues. Esperemos que nenhum inglês veja.

[…]

(*) Versão ligeiramente modificada de texto originalmente publicado no portal da comunidade portuguesa na Bélgica www.luso.eu, onde podem ser encontradas (tal como no ‘site’ do PÚBLICO) as notas de rodapé e as referências.

[Transcrição parcial de artigo da edição em papel do jornal “Público” de 18.05.16.]

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