Carta-Aberta ao Ministro da Educação
Maria do Carmo Vieira
É impossível continuar a sujeitar a comunidade escolar à instabilidade que representa a contínua mudança de programas, sempre que surge novo Governo.
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Como investigador e pessoa estudiosa e de conhecimento que é, Senhor Ministro da Educação, compreenderá a violência que é impor a um professor determinadas inovações que colidem frontalmente com o seu estudo, com o conhecimento da sua área de ensino, no caso explícito, de Português, e com a sua própria experiência. Na verdade, violenta é toda a imposição da novidade pela novidade, quantas vezes ligada a interesses pessoais e a lobbies ou a teorias que já demonstraram o seu completo falhanço, noutros países, ou até à atitude juvenil de transgredir. Violento é também que se queira punir quem ouse dizer o contrário.
A minha experiência profissional testemunha o que anteriormente expus, e duas situações, entre várias, serão suficientes para ilustrá-lo: a primeira prende-se com uma acção de formação de um dia, dinamizada por dois jovens contadores de histórias, já inseridos no espírito da última Reforma de 2003, e que percorriam o país, apresentando as suas sugestões inovadoras a alunos e professores. Tentavam que compreendêssemos, numa grande euforia discursiva e gestual, quão rotineiro e maçudo era para as crianças o início das histórias, com o “papagueamento” da célebre frase “Era uma vez…”, que na sua douta visão nada tinha de mágico. Assim, para interromper essa monotonia e arejar a própria história, libertando-a do fundo dos tempos, davam como exemplo de salutar início “Uma vez era…”, alteração, diziam, a que as crianças tinham reagido muito bem. Parece que a boa nova teve tempo efémero de existência, ainda que a actividade dos inovadores se mantivesse, durante algum tempo, e muitos professores tentassem, curiosos, analisar os seus efeitos que, no entanto, nunca foram descritos.
A segunda situação tem a ver com a atitude do Ministério da Educação (ME), no final do ano lectivo de 2006, após ter recebido uma carta minha, endereçada à Senhora Ministra, na qual eu analisava criticamente os novos programas e os manuais, concluindo da minha impossibilidade em cumprir o que considerava um absurdo e uma imensa falta de respeito pelos alunos, pondo em causa, se obedecesse, a minha responsabilidade e a minha competência profissionais. Mencionava também o facto de não compreender bem o alcance de “um ensino centrado nos alunos”, ou a quase exclusividade atribuída ao trabalho de grupo ou ainda a quase proibição de aulas expositivas. Essa carta, depois reenviada digitalmente pelo ME ao Conselho Directivo da minha Escola, com a informação de que não me deveriam dar conhecimento, apresentava sublinhados todos os verbos que recusavam o cumprimento de uma matéria programática absurda que, a meu ver, estupidificava.
Na mesma mensagem, o ME solicitava à Escola que enviasse, no prazo de 48 horas, todas as notas que eu atribuíra aos alunos. Por impossibilidade de o fazer, aceitou o ME que fossem apenas as classificações dos últimos 5 anos. Nada vislumbrando de errado, solicitaram o curriculum, tendo a tentativa de amedrontar ficado por aqui. O certo é que não leccionei os novos programas, indo para o ensino nocturno onde não estavam em vigor, e tendo também interrompido a correcção de provas de exames do 12.º ano, trabalho que troquei por uma avalancha de vigilâncias de exames. Poder-lhe-ei acrescentar, Senhor Ministro, que um dos aspectos criticados por mim, nos programas, foi a supremacia dada ao texto funcional, em detrimento do texto literário, e o saque que havia sido feito aos clássicos. Talvez desconheça que se aconselhava o estudo da lírica de Camões com “2 ou 3 dos seus melhores sonetos”, sugestão que certamente considerará inaceitável, logo, ofensiva para qualquer professor.
Louvo, ainda que considere demasiado extensos, os novos programas de Português do Básico e do Secundário, não só pelos autores terem sublinhado a necessidade do estudo da Gramática, mas também a importância da Literatura, enquanto arte da palavra e imprescindível numa reflexão sobre a condição humana, e que por isso mesmo não pode estar em pé de igualdade com um texto de carácter utilitário, aspectos que certamente serão tidos em conta nesta reflexão sobre o “Currículo para o século XXI” que teve lugar na Gulbenkian.
Compreenderá, Senhor Ministro, que é impossível continuar a sujeitar a comunidade escolar à instabilidade que representa a contínua mudança de programas, sempre que surge novo Governo. Ter-se-á agora a oportunidade de mostrar a vontade em conciliar ideias e sugestões, apresentadas na Gulbenkian e expressas também nos questionários preenchidos pelos professores, evitando reacender conflitos que só vêm prejudicar os esforços desenvolvidos em prol da qualidade do Ensino. De aproveitar será também o facto de os professores terem manifestado favoravelmente a influência das metas curriculares, na sua prática lectiva.
E porque, inúmeras vezes, tem sido referido pelos professores o caos que a imposição do Acordo Ortográfico de 90 (AO) trouxe ao ensino da Língua Portuguesa, evidenciando também a violência que foi na prática lectiva o serem forçados a cumpri-lo, cremos que há toda a urgência, porque de um património se trata, em repensar este assunto, tanto mais que o próprio Presidente da República também nele parece estar interessado. Será certamente do conhecimento do Senhor Ministro o parecer veementemente desfavorável, apresentado pelo próprio ME (1991), mas lamentavelmente ignorado, num testemunho manifesto de falta de respeito e de grave falha democrática.
Invocando de novo, Senhor Ministro, a sua qualidade de investigador, exigente e rigoroso, porque assim se caracteriza toda a investigação, concordará decerto que a Nota Explicativa do AO de 90 carece precisamente de exigência e de rigor, havendo ainda a notar casos anedóticos na sua redacção. O caos na ortografia da língua portuguesa está patente em todo o lado, indo-se para além do que se quis impor, como poderá verificar na frase que transcrevo “[…]. A nossa Saudade é, de fato, única, […]” (in programa de “Música Sem Fronteiras”), um entre milhares de exemplos que diariamente encontramos.
Preocupados estão igualmente os professores, mormente os de Português, com as sugestões, no mínimo, ridículas, para favorecer a dita “linguagem inclusiva”, situação que parece não ocorrer só em Portugal, mas também em Espanha. Servem-se da língua para inovações que os orgulham e que mais não significam do que algum tipo de frustração e muita arrogância, no prazer de impor estupidamente a sua vontade. Primeiro tentou-se a “presidenta”, logo, também “a estudanta”, qualquer dia alterar-se-á “o povo” e agora propõe-se “cartão de cidadania” em substituição de “cartão de cidadão”, ignorando-se o significado de cada uma das palavras (basta consultar o dicionário) e o erro que será cometido, obedecendo-se a esta proposta. E se o outro “género” não gostar que a palavra termine no feminino? Esquarteja-se a palavra até que fique com um aspecto andrógino? Não pode a Língua Portuguesa estar submetida a estes desmandos e, nesse sentido, o Ministério da Educação deveria também intervir.
Maria do Carmo Vieira
Professora
[“Público” (edição em papel), 05.05.16. Acrescentei “línks” e destaques. Fotografia de topo: TVI/Lusa.]