O Acordo e a linguiça
JOÃO GONÇALVES
No início de 2012, quando chegou à presidência do Centro Cultural de Belém, Vasco Graça Moura mandou retirar de todos os computadores o software que “corrigia” os textos em consonância com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, o AO90. Entretanto já todos os departamentos da Administração Pública, praticamente todos os órgãos de Comunicação Social e os principais empórios editoriais tinham adoptado o AO90. Sobretudo aqueles que comercializam literatura escolar. Paulo Franchetti, no outro lado do Atlântico, refere o AO90 como “aleijão” e já o vi denotado aqui e acolá em “aborto”. O “Jornal de Angola” é mais sóbrio: “se o étimo latino impõe uma grafia, não é aceitável que através de um qualquer acordo ela seja simplesmente ignorada”. O subscritor político em nome do Governo português de então, Santana Lopes, afirmou na semana passada que a língua não é uma “relíquia” pelo que a “abrasileirização” seria quase uma fatalidade. Para mais, acrescentou, há crianças que não conhecem outra ortografia a não ser a imposta pelo AO90 pelo que seria um disparate ir agora privá-las desta “ferramenta”. O comentário veio a propósito de o presidente da República ter relançado o debate público em torno de um acordo internacional ilegal, circunstância pelos vistos desprezada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros: o AO90 não vigora nas diversas ordens jurídico-políticas da chamada “lusofonia” pela prosaica razão de que nem todas o ratificaram. Em Portugal, talvez pela incorrigível mania da “originalidade” – e, como Miguel Sousa Tavares não se cansa de recordar, para justificar tanta académica ida e volta ao Brasil – o AO90 oficializou-se sem ser aplicado genericamente pela população escrevente, seja em privado seja por dever de ofício. Introduzimos um “terceiro género ortográfico único” que o endémico analfabetismo funcional reproduz erradamente em rodapés e títulos de jornais. Até mesmo no Brasil apenas este ano se conclui o período transitório e depois logo se vê. É que o Brasil deve ter mais para se coçar do que com coisas como “facultatividades”, “cláusulas de exceção” ou duplas e triplas grafias. João Ubaldo Ribeiro, aliás, não poupou o “acordês” e o negócio subjacente: “a reforma ortográfica não enriquece em nada o idioma, mas alguém enriquecerá com ela”. A ilógica soviética de tentar legislar o português deve ser contrariada para evitar, escreve Ubaldo, “começar a falar linguiça com o i mais forte que o u”.
[Source: O Acordo e a linguiça, JN, 09.05.16. Acrescentei “links”. Imagem: Olé Idiomas]