Dia: 25 de Junho, 2016

Humilhações (sem data)

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«humilhações»

«O relato da Agência Lusa, transmitido para vários órgãos de comunicação social, entre os quais a TSF, sobre o que se passou com a elaboração da acta relativa à XIV Conferência de Ministros da Justiça da CPLP, designadamente sobre o desacordo final (quem diria!) quanto à sua redacção e a escolha da grafia “oficial”, representa, lamentavelmente, bem mais do que aquilo que à primeira vista possa parecer. À partida não está em causa, apenas, uma simples discordância sobre a forma de grafar um termo com um sentido comum a todos os países lusófonos. Uma acta é um documento em que se descreve e regista aquilo que de relevante se passa numa reunião. Em causa está, desde logo, por simples falta de vistas, teimosia, estupidez e ausência de sentido de Estado, digo eu, mais um acto (com “c”) de desprezo para com Portugal – leia-se o seu poder político legítimo – por parte dos seus pares na CPLP.

O simples facto de todos os funcionários públicos em geral, os militares, os magistrados e os diplomatas, como servidores públicos que são, serem obrigados a cumprir com todas as instruções que um poder político que não sabe conjugar o verbo haver lhes dita, conformando-se com o que de mais tolo e contra a natureza das coisas lhes é imposto, já de si seria triste. Que numa matéria como a da língua se chegue perante os demais Estados que compõem a CPLP a passar por um tão grande absurdo, sujeitando-se um ministro da Justiça de um Estado soberano desde a Conferência de Zamora, em 1143, a ter de ouvir o que, com toda a razão, lhe foi recordado pelo representante de Angola, assume contornos de humilhação política. Era perfeitamente evitável que Portugal tivesse de passar pela situação de lhe ser recordado que o Acordo Ortográfico não foi ratificado por Angola, também ele um estado soberano lusófono, não podendo por isso mesmo ser utilizado no documento em questão. Esse já não foi um acto de humilhação do País e de desprezo pelo seu poder político. Aí, e isso é que é mais grave, é já a própria língua portuguesa, aquela que recebemos dos que nos precederam e que os angolanos agora defendem, que está a ser objecto de humilhação e chicana com a conivência do Governo português.

A notícia da Lusa não nos diz qual terá sido o papel do representante de Portugal nesta contenda. Nem se ao representante da Guiné-Equatorial, um novo Estado “lusófono” ditado pela mais mercenária e subserviente “diplomacia económica”, por algum momento passou pela cabeça apontar a solução castelhana de se utilizar o substantivo feminino “acta” (do latim acta) para resolver a disputa que culminaria com a caricata, mas salvadora solução de compromisso proposta por Cabo Verde e que serviu para evitar maior vergonha, de se usar num texto internacional a grafia do novo Acordo Ortográfico “como base e, em cada caso, a grafia pré-Acordo Ortográfico, entre parêntesis“, numa verdadeira salganhada linguística da qual só Portugal sai mal.

Quando numa cimeira entre Estados lusófonos se chega à situação de que a Lusa dá conta, talvez seja este o momento de se voltar a perguntar aos que em Portugal, à viva força e contra todas as evidências, se afadigaram a impor o (des)Acordo Ortográfico de 1990, se a solução a que se chegou não recomenda um apelo à inteligência e ao bom senso, antes que este tipo de danos, que não são colaterais, se multiplique.  Para vergonha de todos os cidadãos que em todo o Mundo se expressam na língua que lhes é mais querida, naquela que lhes revela os afectos, as paixões e as lágrimas da saudade, e que os torna dignos da herança daqueles que, como Vasco Graça Moura ou Maria Lúcia Lepecki, dedicaram toda uma vida a lutar pela divulgação e pela dignidade do único e verdadeiro património que a História nos legou.

Património que ao longo dos séculos permitiu a convivência – e o amor – entre povos das mais diversas origens, ultrapassando as suas minúsculas fronteiras naturais para se enraizar mundo fora sem que para tal se trocassem os substantivos pelas formas verbais. Tudo bem longe da paupérrima visão e dos despachos da casta de amanuenses que há séculos ocupou o Terreiro do Paço, convencida de que a decência e a respeitabilidade de uma nação milenar se compram com euros, submarinos, computadores e bandeiras chinesas na lapela dos casacos.»

[Reprodução integral de artigo publicado em 25.06.15, há exactamente um ano, no “blog” Visto de Macau, da autoria de Sérgio de Almeida Correia. A imagem foi copiada também daquele mesmo “post”.]