«AO90 é um disparate» [Maria Filomena Molder, “Expresso”]

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expresso-logoMaria Filomena Molder: “Só começamos depois de continuar”

06.06.2016 às 8h04

Chegou à Filosofia por não saber o que era. Foi professora até 2013, daquelas que não se esquecem. Escreveu uma dezena de livros e o que se segue está prestes a sair. Foi-nos revelado o final: a arte ganha

Chega-se e não há engano possível. Lá estão os sinais que a definem, a superpovoada biblioteca, as fotografias, os quadros, a janela sem cortinas para entrar a luz. E ela afável entre os seus tesouros, de que lançará mão durante a conversa. “Posso ler-lhe uma passagem?”, diz mais do que uma vez. Maria Filomena Molder, filósofa e professora (aposentada), não resiste ao poder de uma frase bem dita. Mesmo que o texto seja um descampado, um vinho de sabor estranho. Quem foi seu aluno na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, onde leccionou durante 30 anos a disciplina de Estética, fica a sê-lo para sempre. É uma condição da qual não se sai. Semelhante à da própria filosofia, essa pergunta sem resposta em que se integram todas as perguntas e respostas, num movimento instável e perpétuo sem o qual deixaria de existir. Numa manhã de Maio, falámos longamente sobre esta sua escolha. Sobre o seu novo livro (escreveu uma dezena). Sobre o papel do filósofo e sobre os que lhe são familiares. Sobre as causas que a espicaçam, que não estão fora do mundo. E sobre uma insatisfação inesperada — talvez o motor que a faz continuar.

[…]

Num seminário disse que, para compreendermos a nossa existência, temos de compreender as suas condições concretas. Isto é o oposto do que se pensa da filosofia: uma disciplina que paira acima do concreto.

É verdade. Por um lado, há na filosofia esse momento destrutivo e analítico, sem o qual não há filosofia. E é por isso que muitos textos filosóficos parecem ilegíveis — é como querer ler uma partitura e não saber música. Mas há também, por exemplo em Wittgenstein, a noção de que o significado das palavras não pode ser compreendido antes de termos olhado com muita atenção para os seus usos. O significado abandonado a si próprio é opaco.

Mas qual o papel do filósofo? Há causas que a mobilizam, como a morte assistida ou o acordo ortográfico (AO).

Sou a favor da morte assistida e contra a tentativa de impedir a liberdade de cada um em relação à sua própria morte. Estamos numa situação do ponto de vista tecnológico que faz com que aquilo que já não é vida humana seja prolongado de maneira indecente. E quem está prestes a ficar numa situação dessas deve poder dizer que não o quer. Não há nenhuma crença religiosa que se possa erigir em juiz da decisão de uma pessoa que não tem essa crença.

E porque é se opõe com tanta veemência ao AO?

A ortografia não é a língua. Quando era pequenina havia muitos analfabetos que falavam um português maravilhoso. Porém, a língua não está separada da escrita. Nas “Investigações Filosóficas”, Wittgenstein diz: “Pensa que a imagem virtual da palavra nos é num grau semelhante tão familiar como a auditiva.” No AO, esta familiaridade foi quebrada por razões enganadoras. Convém não esquecer que se trata de um acordo, um compromisso de unificação do que não é unificável. E é um disparate, porque apregoa uma unificação que ele próprio não consegue: o próprio AO admite grafias diferentes para as mesmas palavras. Além disso, pela primeira vez, uma reforma ortográfica tem consequências no modo de dizer as palavras. O ‘p’ em ‘recepção’ tem uma função elucidativa da vogal aberta. Podia ter-se substituído por um acento grave no ‘e’, mas não se fez. A tendência do falante de português — não do brasileiro — será fechar essa vogal. A ortografia modificará a leitura e a linguagem falada. E já gera confusões, como vir no “Diário da República” escrito ‘fato’ em vez de ‘facto’.

Isso é ignorar o próprio AO…

Estou em crer que 99% das pessoas que o aplicam nunca o leram. O Frederico Lourenço, alguém que admiro, escreveu que sempre houve mudanças na ortografia e que já se perderam vestígios etimológicos. Tem razão. Mas há uma coisa que se chama memória. E porque muitos vestígios se perderam temos de anular os que restaram?

Isto leva-nos ao seu novo livro, onde escreve: “Primeira regra: continuar. Segunda regra: começar.” A ideia, muito presente em si, de que nada vem do nada.

Essas regras vêm de um autor francês que estimo imenso e caiu no esquecimento, chamado Alain. E são mesmo regras para mim. Há uma história de infância que conto num dos meus livros. Eu brincava numa rua íngreme por trás da minha casa. Um dia subi-a, desci e fiz uma coisa que nunca tinha feito, que é olhar para o horizonte. E vi que estava lá o rio Tejo. Foi uma experiência muito forte, a de sentir que aquilo estava lá antes de o ter visto. Onde eu estava a começar, estava a continuar. Nós só começamos depois de continuar.

[…]

[Excerto de entrevista Expresso | Maria Filomena Molder: “Só começamos depois de continuar”. Conteúdo desbloqueado hoje, 06.06.16, no “site” do semanário. «Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 28 Maio 2016».]

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1 Comment

  1. Haverá alguém que consiga impedir, de facto, qualquer um de dar um tiro nos miolos ou de engolir um daqueles cogumelos comestível apenas uma vez? Dois amigos fizeram isso, fez-se o funeral, choraram-se umas lágrimas, a vida continua até chegar a nossa hora. Porque motivo tem o Estado de imiscuir-se nesse assunto? Não percebo estas pessoas que querem que o Estado imponha totalitariamente os seus valores (ou a ausência deles) e depois gritam aqui d’El-Rei que o Estado quer impôr totalitariamente a grafia de um babaca marteleiro qualquer. A Maria Filomena Molder parece não compreender que autoriza implìcitamente que o Estado imponha legìtimamente o AO90 ao querer que seja o Estado a impôr a regulação da morte dos indivíduos.
    Boas pedaladas.

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