A ‘nostalgia da língua portuguesa’
Semanário “SOL”, 23.07.16
Inês Pedrosa
Fora do minúsculo meio político-cultural — um dedal, embora os seus elementos não gostem de se incomodar a reparar nisso — não conheço ninguém que saiba o que é a CPLP, que agora completou 20 anos.
Mesmo dentro desse culto e informado meio, é fácil encontrar quem nunca tenha ouvido falar dela, pelo menos no Brasil, que por sinal é o maior país dessa associação.
CPLP é a sigla para Comunidade dos Países de Língua Portuguesa; uma comunidade tão generosa que inclui, desde 2014, a Guiné Equatorial, que não fala português nem respeita os direitos humanos básicos. É certo que ‘respeito’ é um conceito relativo: os sheiks das Arábias acham que faz parte do respeito pelas mulheres proibi-las de decidir o que quer que seja e apedrejá-las caso se deixem violar, tal como os governantes de Angola acham que faz parte do respeito pela liberdade de expressão prender quem pense que manter o povo na miséria não corresponde ao modelo ideal de democracia.
Eu própria, que me interesso por estas coisas, só agora descobri que a CPLP inclui um Instituto Internacional da Língua Portuguesa, para promoção mundial da Língua.
Não sei o que tem feito o Instituto para cumprir esse nobre desígnio: da Língua e da CPLP, a bem dizer, só tenho ouvido falar a propósito do mal-amanhado Acordo Ortográfico, que supostamente nasceu para reforçar o peso do idioma no mundo e para estreitar os laços culturais entre os países lusófonos.
Maria Velho da Costa disse há anos que Lusofonia parecia nome de doença de garganta, e assim tem sido: um pigarreio contínuo, que o tal acordo unificador, brilhantíssimo – que faz com que receção se escreva hoje sem ‘p’ em Portugal e com ‘p’ no Brasil – não veio curar, antes pelo contrário.
Dia: 25 de Julho, 2016
«Amarga irrisão, a da nossa Lusitânia» [Fátima Bonifácio, “Observador”]
Amarga irrisão, a da nossa Lusitânia
A propósito da polémica sobre os brasões das ex-colónias na Praça do Império e os 20 anos da CPLP, Fátima Bonifácio escreve sobre a “selectividade histórica que resulta na amputação da memória”
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Há 20 anos, segundo informou o vereador José Sá Fernandes no Público de 27 de Agosto de 2014, Portugal – nós todos, suponho que através da Câmara Municipal de Lisboa – votou ao abandono os Brasões da Praça do Império, de que hoje sobram apenas uns murchos “restos” melancólicos que ninguém rega, que ninguém poda, de que ninguém cuida; alguns definharam ao ponto de desaparecerem, soterrados por baixo das ervas daninhas e da vegetação selvagem que espontânea e exuberantemente se foram instalando no terreno.
Em 2014, Sá Fernandes, vereador responsável pela Verdura e Energia da capital, alegou que aqueles símbolos do Império “estavam ultrapassados” e que não fazia nenhuma espécie de sentido conservar composições florais alusivas aos vastos territórios de um Portugal pluricontinental que cessara de existir a partir de 1974. Porém e misteriosamente, até mesmo paradoxalmente, ao passo que estes abomináveis “símbolos do colonialismo” – não obstante constituírem um conjunto único de mosaico-cultura – eram sumariamente condenados a uma morte deliberada e anunciada, já os “brasões em pedra do lago central” são para manter, segundo o relatório aprovado pelo júri chamado a pronunciar-se sobre o projecto vencedor para a requalificação, recuperação ou restauro da Praça do Império (Público, 20.7.2016).
Em suma, há brasões e brasões, vá-se lá saber porquê. E se certos brasões ofendem a nossa consciência desembaraçadamente progressista e decididamente anticolonialista, cabe perguntar por que motivo se não arrasa o Padrão dos Descobrimentos, ali mesmo ao lado, com a assinatura do mesmíssimo arquitecto, Cottinelli Telmo, e igualmente ensombrado pela sua ligação umbilical à Exposição do Mundo Português de 1940. E, já agora, cabe ainda perguntar por que motivo se não arrasam tantas construções manuelinas, já que todas elas ostentam ornamentações inspiradas nos elementos náuticos que estão na origem do nosso Império multicontinental, designação de fachada inventada pelos fascistas para encobrir o descarnado colonialismo que mancha indelevelmente a gesta lusitana através dos séculos.
Simoneta Luz Afonso, presidente do júri referido, tem o bom senso de não ir por aqui. Argumenta que o conjunto de composições florais em que se integram os brasões não constava do projecto original de Cottinelli Telmo, e que por isso não podiam tais conjuntos (e tais brasões) ser considerados “um elemento histórico”; além disso, “foram criados para uma exposição de floricultura, que era uma coisa absolutamente efémera.” (Público, 20.7.16).
Pois, de facto não constavam do projecto inicial de Telmo, que era o projecto da Praça do Império propriamente dita, mas constavam do projecto do jardim quadrangular criado na mesma altura e para o mesmo efeito comemorativo dos 800 anos da independência de Portugal, porém desenhado por um outro arquitecto, de seu nome Vasco Lacerda Marques. Quanto ao destino “absolutamente efémero” que lhe teria sido ‘ab initio’ assinado, convenhamos que, para efemeridade tão absoluta, duraram demasiado tempo. Duraram de 1940 até 1994 (se as datas fornecidas por Sá Fernandes estão certas, como têm obrigação de estar). Duraram cinco décadas e meia, mais de meio século, tempo mais que suficiente para terem sido historicamente consagrados. Como historicamente consagrada está a igreja de Siza Vieira em Marco de Canavezes, embora conte apenas com 20 anos de existência.
Bem sei, evidentemente, que uma igreja não é o mesmo que uma exposição de floricultura ou uma “instalação” qualquer. Mas só os anos, só a idade não chegam para conferir carácter histórico a uma construção. Para lhe acharmos um tal carácter é necessária a Beleza, e é certamente devido a esta transcendência do funcional (e do actual) que os brasões por lá foram ficando, acabando por integrar muito naturalmente a Praça do Império e cobrando, deste modo, um inegável carácter histórico.
A polémica, portanto, é puramente ideológica e política. Este é o facto que nem os argumentos ditos técnicos conseguem disfarçar.
A culpa do Colonialismo
Devo dizer que a remoção ou permanência dos malfadados brasões nada me interessa. Interessa-me, sim, o que a polémica revela sobre a ínvia selectividade a que a nossa história é sujeita. Uma selectividade que, ontem como hoje, no Estado Novo ou em Democracia, resulta na pura e simples amputação da memória que não convém ao regime vigente. E desde o seu princípio que à Democracia não convém toda e qualquer espécie de simples evocação do nosso passado colonial que de algum modo, seja lá ele qual for, denote, conote, sugira, manifeste ou pareça que manifesta uma celebração ou um festejo do nosso horrendo passado imperial e colonialista.