AO90: «sabotagem da língua portuguesa no mundo» [JP Borges Coelho, “Rede Angola”]

RedeAngola_logoExcertos de uma (longuíssima) entrevista do escritor JP Borges Coelho ao “site” Rede Angola, dando especial ênfase (destaques a vermelho), como é evidente, à sua radical oposição ao “acordo ortográfico”, sobre o qual o escritor não é peco nas palavras:  sabotagem da língua portuguesa no mundo, artifício e má-fé, populismo barato etc. Um belo festival de mui certeiras adjectivações, competentemente abrilhantadas pelas respectivas argumentações.

 

João Paulo Borges Coelho – Uma conversa com o escritor moçambicano a propósito do seu último livro: “Água – Uma Novela Rural”.

25.07.2016 • 00h00

Por António Rodrigues (texto), Ana Brígida (fotos).

Uma conversa com o escritor moçambicano a propósito do seu último livro: “Água – Uma Novela Rural”.

Três anos depois de Rainhas da Noite, João Paulo Borges Coelho volta a editar um romance. Água: Uma Novela Rural larga o passado como cenário da narração e fala de um tema importante no presente de África, a água e as alterações climáticas que tornam mais difícil a gestão tradicional dos períodos de seca.

No entanto, o escritor moçambicano insiste que se não se trata de nenhuma tentativa de fazer passar a mensagem: “Este não é um romance especificamente sobre a questão da escassez ou sobre as mudanças climáticas, mas é um romance em que estas questões estão presentes. E não é sobre isso, porque eu não acredito em literatura de mensagens, a literatura não serve para isso, serve para contar histórias…”

Como que assegurando o enquadramento necessário, a entrevista decorreu num meio dia de muito calor, sol intenso, à beira do rio Tejo, em Lisboa, por onde prazeiramente se passeavam alguns veleiros.

[excertos]

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E porquê a duplicação das vogais e as diferentes grafias em quase todos os nomes?

Eu vi essa duplicação de vogais em muitos nomes somalis, dá um ar mais leve e, por outro lado, não queria identificar totalmente o rio com o Ryo, mesmo a lama com o Laama – trazia a ideia da lama, mas afastava ao mesmo tempo -, até o engenheiro alemão é Waasser com dois “a”.

(…)

Há também aqui uma crítica velada a essa ajuda exterior a África que acaba por prejudicar o desenvolvimento africano?

É óbvio que a ajuda traduz uma disposição humanitária, é uma coisa positiva e resolve problemas e é preciosa em muitas instâncias, mas também tem lados perversos. Tem lados perversos no sentido ético, ajudando a apaziguar sensações de culpa. Eu acho que precisamos cada vez mais de discutir o presente pós-colonial, porque cada vez mais a história está a transformar-se num álibi para não discutirmos o presente.  Nesse sentido, eu acho que temos muitas vezes excesso de história que serve de desculpa para as nossas misérias actuais, misérias que temos de enfrentar e discutir. Mas, voltando à questão da ajuda, muitas vezes essa ajuda tem efeitos perversos porque desequilibra mercados, pelo facto de haver tanta abundância de um lado no meio da escassez. As tentativas, por exemplo, de produção de milho local são arrasadas pelas sacas de milho desembarcadas de pára-quedas que fazem cair os preços. Há um distanciamento em relação à questão da ajuda, mas no fundo é a água da ajuda que deu de beber às pessoas, portanto, não é possível responder de uma maneira ou de outra, há várias faces no problema da ajuda.

Em relação a essa falta de discussão do presente pós-colonial, a determinada altura no livro, o pastor Praado grita “nada disto acontecia se não fosse o branco”. Há também muita tendência, passados estes anos sobre o fim do colonialismo, em culpar o branco, quando a solução deveria ter sido encontrada localmente, pelas pessoas que têm agora os seus destinos nas mãos…

Quando as pessoas dizem, por exemplo, “ainda há racismo”, o quer dizer este “ainda”? O racismo o que é? É o afastamento em relação ao outro e isso não se localiza no tempo, isso vai e vem e é recorrente, acentuando-se normalmente quando há situações de crise, quer como problema cultural, quer como mero recurso instrumental para resolver problemas – a competição, por exemplo. Mas o racismo está sempre presente em toda a parte, está presente aqui, está presente lá e tem vários sinais. Muitas vezes reduzimos o racismo a uma questão de poder e aí, por exemplo, aquela perspectiva da vitimização do negro por sistema. Eu acho que o racismo é mais do que só uma questão de poder que está associado ao fenómeno colonial, às três grandes feridas de África: a escravatura, o colonialismo e o apartheid. O racismo tem também uma dimensão de afastamento em relação ao outro e, nesse sentido, a qualificação desse afastamento é diferente da mera constatação da diferença. O racismo é uma qualificação da diferença que é quase como um gesto de defesa também – não é só um gesto de poder é um gesto de defesa.

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“É uma crise de princípios, é uma crise da moral pública”

Esta crise económica e política também é uma crise cultural?

É, obviamente, porque é uma crise de princípios, é uma crise da moral pública. A corrupção é um mal que nos afecta e não podemos encarar essas coisas metendo a cabeça na areia ou fingindo que elas não existem. Tudo isso tem de ser discutido e há muito pouca discussão na sociedade, é uma outra herança do grande retrocesso em termos de informação. O debate é cada vez mais difícil, é associado logo a ameaças e brutalidade. Vários exemplos recentes mostram que o debate é cada vez mais difícil, com cortinas de fumo e com o patriotismo e o antipatriotismo como mecanismos, instrumentos de facto para o dificultar. É preciso recobrarmos uma certa serenidade, é preciso recobrarmos um conjunto de princípios, porque a Frelimo, o regime dos primeiros anos, prestava muita atenção aos princípios, está no ADN desses movimentos. Temos que recuperar da herança histórica esses aspectos, não é ir buscar a tralha, a canga que veio depois e que infecta todo o processo actual.

E há referências culturais? Há referências para quem as pessoas se possam voltar e ouvir essa opinião?

É muito difícil porque é muito fechado aquele círculo. E há muito silêncio, e não é claro o que esse silêncio significa – significa derrota, significa receio, significa coesão a qualquer preço, não sei. Não trabalho essas questões profissionalmente.

E vozes literárias? Não há vozes literárias novas? Há gente com talento a escrever…?

O livro é um meio de luxo, é preciso haver mais livros, é preciso haver mais língua. Devo-lhe dizer que o acordo ortográfico é das coisas que não ajuda, é a sabotagem da língua portuguesa no mundo. É preciso haver maior investimento na língua, trabalho da língua e sobretudo do livro. Mas já há muito interesse, as camadas jovens são curiosas e interessantes em qualquer parte do mundo e em Moçambique não é excepção. Há muita gente interessada, sobretudo que começam com a poesia, mas é preciso muito trabalho, é preciso muita leitura e há uma espécie de dificuldade de massa crítica que faça a literatura crescer por si só.

(…)

“A língua é a carne do pensamento (…) devia ser tratada com muito mais seriedade e respeito”

Em relação ao acordo ortográfico. Os seus defensores falam dessa ideia de criar um espaço da língua portuguesa que fosse mais comum, mais homogéneo, que permitisse mais intercâmbio cultural. Acha que o acordo ortográfico não serve para isso?

Não. Eu acho que falar na homogeneidade é um artifício e acho que é má fé. Eu sou muito radical em relação ao acordo. Eu acho a diversidade muito mais poderosa do que a coesão. Já ouvi dizer, por exemplo, que a língua inglesa nos dá o exemplo de coesão quando o inglês e o americano se grafam de maneiras distintas, talvez mais até do que no caso do acordo ortográfico e as pessoas lêem-se umas às outras. Seria ridículo e seria uma acção de lesa cultura tentar passar o acordo ortográfico pelo texto do Raduan Nassar. Ou da Clarice Lispector. E a vantagem que nós temos é ler-nos uns aos outros sem precisar de tradução, percebendo exactamente a riqueza dessas diferenças.

Depois há todas as razões que muita gente apontou melhor do que eu seria capaz, desde acabar com a história das palavras, desde ignorar a escrita como um acto de cultura e argumentar que são os sons que regem a língua. Este populismo barato de que a língua é o que se fala – a língua é o que se fala e o que se escreve! Como se o que se escreve não afectasse o que se fala: recessão não é o mesmo que recepção. E se nós não temos um mecanismo de abrir [a sílaba], na geração seguinte as coisas são uma só  e caminhamos em direcção à unificação total que é a parte perversa e má da globalização.

Os nossos problemas são bem mais reais porque são problemas de aprender a língua, de aprender a falar, de aprender o cânone, mesmo que seja para fugir dele, mas com o conhecimento de causa. São espaços periféricos, mas são espaços que interessam porque são aqueles que têm o maior número de falantes e de escreventes. E Portugal tem um papel central aí, mas no fomento da língua, não na assumpção de uma atitude pós-imperial bacoca. Por trás desse argumento, embora não de maneira formulada, está uma espécie de polícia da língua que não tem qualquer efectividade porque não há um mecanismo de transmissão desta intenção. A mim o que me entristece é que da parte da esfera política – esquerda, direita – parece que não há uma reflexão profunda sobre isto, há uma reflexão sobre a política da língua mas não há sobre a cultura da língua e sobre a língua nas sociedades. Parece-me que é tudo tomado de ânimo leve.

Essa cultura da língua existe? Ou seja, esse intercâmbio de línguas que são o português dos vários países que o falam, existe em Moçambique? Sabe-se o que se está a passar…?

Sim, até é natural que muitos dos órgãos que dirigem a língua entre aspas sejam cooptados para estes pequenos circuitos, mas eu acho que isso é um tiro no pé porque é preciso entender de facto a realidade das milhões de pessoas que falam. É muito mais importante isso do que nos pormos a traçar orientações e a dar ordens. Porque as coisas não chegam lá e ainda bem que não chegam. Eu espero que Angola e Moçambique tenham um papel a jogar e espero que não embarquem nisso, que haja um bom senso de última hora que obrigue a repensar e a discutir [o acordo]. Esta atitude de dizer que já está resolvido, acho-a de certa forma insolente. É tratar coisas sérias como se fossem pequenos recursos para um debate político que é pacóvio, que é pequeno. Não há uma grande visão e ouço os políticos dizer “isto acaba por se resolver, é preciso termos paciência e aguardar”. Isto entristece-me muito porque a língua não é um instrumento, a língua é a carne do pensamento e é central até na nossa identidade, devia ser tratada com muito mais seriedade e respeito.

(…)

De alguma forma, numa altura em que se comemoram os 20 anos da CPLP, uma demonstração de que a comunidade tem muito pouco peso em termos da construção do espaço da lusofonia?

Acho que a CPLP está muito fragilizada por vários factores, pelo próprio factor da língua em que ela não traz diferença, é posta em causa ao primeiro abanão, como no caso da Guiné Equatorial. Está posta em causa por essa negligência do factor democrático – devo dizer com pena que são os países do Sul que arrastaram essa questão da Guiné Equatorial, que acho inqualificável e tenho muita pena que seja um embaixador moçambicano o defensor vocal dessa integração [o secretário-executivo Murade Murargy].  Já ouvi o argumento [da entrada] do Uruguai, que acho que faz muito mais sentido do ponto de vista até da língua…

E do ponto de vista histórico também…

Exactamente! E ainda não percebi bem, do ponto de vista estratégico qual é a…eu não uso o termo, detesto o termo “mais valia”, é sempre colocado fora no seu sentido técnico, mas o que traz de facto de diferente, o que acrescenta a CPLP se não acho que ainda é muito um equívoco em que cada membro tem uma ideia distinta e de facto, mas mais fragilizada agora do que no passado, sem dúvida é a minha…o meu entendimento.

A integração de Moçambique na Commonwealth, que muitos à distância diziam seria o fim da língua portuguesa e a anglicização do país, trouxe alguma diferença para a cultura moçambicana?

Não. Quer dizer no mundo dos negócios não saberei dizer, mas em termos da língua acho que patetice considerar isso uma ameaça à língua. Nós estamos cercados de países falantes de inglês. Não se diz, por exemplo, que o facto…eu, com os meus primeiros contactos com Portugal antes do 25 de Abril, ninguém falava inglês. Hoje em dia fala-se muito mais inglês e não vejo porque discutir que isso seja uma ameaça ao português. Quer dizer, é como se os outros pudessem ser bilíngues e a nós fosse vedado o cosmopolitismo. É evidente que quanto mais moçambicanos falarem inglês melhor pra nós, e é evidente que o moçambicano até dá provas de ser bastante bom com línguas, e em todas as zonas de fronteira tem gente que fala inglês. A questão até aí se revela um pouco uma noção pacóvia da propriedade do português, a questão do português não é uma questão de aumentar ou diminuir, é uma questão de afirmação dos próprios povos. O português não é uma língua dos portugueses, o português é a língua de quem a fala, e nesse sentido nós temos o nosso português e é isso que me parece que está ausente mesmo em muitas mentes esclarecidas, há esta noção pós-imperial do português como uma arma quase de gestão da orquestra, que acho pacóvia…

É uma visão um bocado irrealista em relação à língua?

É uma visão pós-imperial e paroquial, as línguas não funcionam assim. E é também cedermos face a meia dúzia de linguistas e de académicos. Os académicos são pessoas falíveis, como quaisquer outras (eu sei, eu sou académico). A ideia de que as indicações dessas pessoas podem ser úteis não faz sentido e acaba por ser contraproducente no fim.

O governo angolano continua sem o colocar em vigor porque insiste que o Acordo Ortográfico não inclui as especificidades do português em outros países. É mais uma coisa feita por académicos entre Portugal e Brasil do que propriamente em relação aos outros espaços da lusofonia.

Tudo o que diz respeito à literatura, incluindo ao português, tem funcionado no eixo Portugal-Brasil, porque são os dois pólos que determinam o cânone. Para nós não é uma questão de opção, não podemos abdicar das nossas próprias realidades. Quando se fala português nos nossos países, não se está a pensar nas lógicas metropolitanas, estamos a tratar de nós próprios. Não se pode querer que a gente assuma o português sem o assumir como factor identitário, portanto o português somos nós próprios. Não falamos português em roaming com Portugal ou com o Brasil, falamos o português como operadora local e é isso que tem de ser reconhecido. De uma vez por todas, a forma de responder aos desafios actuais é muito mais rigorosa se for baseada na diversidade, se não for só a decisão de um, se não for só um cânone. O problema do pensamento moderno não é unificar o pensamento, é tornar as pontes mais ágeis para nos podermos entender, as traduções, no sentido filosófico quase, e eu penso que há muita gente que infelizmente ainda está no século XIX.

Falou numa entrevista que a cooperação é uma das chaves para aliviar os nossos países. Estamos a falar só em termos económicos ou em algo mais vasto?

Muito mais vastas, no sentido em que acredito no cosmopolitismo, na abertura. Quando falamos em globalização estamos mais interessados na circulação das mercadorias do que na circulação das pessoas e das culturas. Cada vez as sociedades estão mais fechadas, estamos a virar-nos cada vez mais para o nacionalismo, mas com a retórica da circulação e do mundo comum. A Europa é um bom exemplo – precisa desesperadamente de gente, vive uma crise demográfica imensa mas não é capaz de lhe dar resposta porque há outros valores que estão colocados. Então, eu acho que a cooperação é mais no sentido global, de pontes de circulação. Veja, por exemplo, na África Austral nós temos a SADC (Comissão para o Desenvolvimento da África Austral), mas não há praticamente ligações na literatura, na cultura em geral, entre Moçambique e África do Sul ou com Angola! Ir para Angola é cada vez mais difícil, para ir ao Brasil é dificílimo, as exigências que me colocam para conseguir um visto… Tudo isto dá uma indicação de que há aqui um nível em que interessa, a circulação das mercadorias. Noutro nível o que interessa é as pessoas arrumadas em gavetas e os problemas contidos em espaços fechados.

(…)

Source: João Paulo Borges Coelho – Rede Angola – Notícias independentes sobre Angola