Ne Varietur!

Já aqui “falámos” por diversas vezes sobre esta questão. Na minha opinião, não existe questão alguma nesta matéria ou, em última análise, tal questão nem se coloca: os direitos de autor sobrepõem-se em todos os casos a quaisquer outros.

Nunca será demais repetir, citando a formulação do próprio Código dos Direitos de Autor, que «o autor goza durante toda a vida do direito de assegurar a genuinidade e integridade da sua obra, opondo-se à sua destruição, a toda e qualquer mutilação, deformação ou outra modificação da mesma, e, de um modo geral, a todo e qualquer acto que a desvirtue».

Pode quem quiser usar os malabarismos mentais ou os truques legalistas que entender. Tudo se consubstancia e decide na matéria em análise, ou seja, na distinção entre o que é e o que não é uma obra protegida neste âmbito: «Consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos deste Código, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores.» (CDADC, Art.º 1.º-1.)

É o caso da criação intelectual ora em causa, que se insere claramente no domínio científico (incidindo sobre matéria literária). Por conseguinte, o tal Art.º 93.º aqui não colhe: não foi por mera “opção ortográfica de carácter estético” que o autor publicou a sua obra em Português correcto, foi porque não reconhece qualquer outro tipo de “ortografia” e não tolera, digo eu, que a ortografia de uma obra sua seja adulterada em circunstâncias algumas e a pretexto nenhum.

Sucede apenas que aquando da publicação daquela obra (1989) a possibilidade de o Estado português estropiar a ortografia ainda nem se colocava e, portanto, o autor não acrescentou — porque não é bruxo, palpita-me — uma cláusula “Ne Varietur” ao seu contrato com a Editora.

 

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A prova escrita de Literatura Portuguesa do 11.º ano (prova n.º 734/1.ª fase, 2016), no seu Grupo II, utiliza alguns trechos do conto “José Matias”, de Eça de Queiroz, retirados da minha edição dos Contos (Lisboa: Dom Quixote, 1989, pp. 125-128). Correctamente, citaram a edição e colocaram o meu nome. Correctamente também, utilizaram uma edição de perfil crítico para assim ser garantida a fidelidade do texto.

Porém, abusiva e incorrectamente, aplicaram a ortografia do “Acordo Ortográfico de 1990”, que além de cientificamente errada é posterior à minha edição. A que acresce o facto de eu não ter sido consultado.

Embora o Código de Direitos de Autor permita a actualização da ortografia de acordo com a norma em vigor (art.º 93.º), sem que isso seja considerado alteração ao texto, o facto é que o texto transcrito sob o meu nome, enquanto editor científico, não respeita aquele que foi assinado por mim.

Neste caso, deveria ao menos ter sido dada a informação de que se tratava de uma “adaptação” da minha edição.

Não o tendo feito, os autores e os responsáveis pela referida prova cometeram um acto reprovável, que os especialistas em direitos de autor oportunamente classificarão em termos jurídicos.
Fica, para já e em cima do acontecimento, o meu veemente protesto.

Luiz Fagundes Duarte

 

[Facebook, 01.07.16: A prova escrita de Literatura Portuguesa do 11.º… – Luiz Fagundes Duarte]

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1 Comment

  1. À sanha tortotgáfica escapou o apelido Queiroz?! Displicência em acção ou espírito de contradição aos que antes já tinham subvertido até o nome do escritor?

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